Na Fórmula 1, mesmo que, ao volante, o piloto tenha a sensação de ter o seu destino na ponta dos dedos, a diferença entre ganhar e perder pode depender do material à disposição. É assumido que Lewis Hamilton se mudou para a Mercedes com a ideia de construir uma carreira vitoriosa igual ou melhor do que a de Michael Schumacher. Ainda antes de conseguir o estatuto de heptacampeão, que partilha com o alemão, o britânico assumia-se como “alguém que arrisca”. “Porque se não arriscas, não vives”, salientava. Era 2018, e, numa conversa intimista, com Toto Wolff, divulgada nas plataformas da Mercedes, o piloto fazia, frente a frente com o diretor da equipa, uma declaração de intenções. “Quero ser parte do caminho até a Mercedes ser a equipa mais bem-sucedida na história da Fórmula 1”, dizia Hamilton. “Isso chateia muito os carros vermelhos, as equipas de vermelho, então, esse é o meu objetivo”.
Nesta altura, a relação de Hamilton com a Mercedes estava nas nuvens, acabando por, anos depois, acabar por descer à terra e fenecer, levando-o a assinar um contrato que lhe garante a possibilidade de conduzir os tais “carros vermelhos” a partir de 2025 e ser pago acima dos 100 milhões de dólares por ano para fazê-lo. O desempenho do Mercedes nas últimas épocas tornou o britânico insignificante na luta pelo título, tendo sido ultrapassado sem pisca pela Red Bull, em especial por Max Verstappen, sendo que a Ferrari, com Leclerc e Sainz, também ganhou um impulso como há muito não se via (ainda que insuficiente para fazer frente ao neerlandês). Com a carreira estagnada num nível abaixo da concorrência, quando já tiver 40 anos, Hamilton vai deixar a equipa onde conseguiu seis dos seus sete títulos.
No ano passado, Lewis Hamilton renovou com a Mercedes com apenas duas temporadas de ligação garantidas. Era um nó, mas não era um nó cego que resiste a um puxão na ponta. Não sendo preciso ser escuteiro para desatar o cordel, a Ferrari chegou-se à frente para juntar a Hamilton a Leclerc. Num dos encontros regulares que mantém com Toto Wolff, na casa do diretor da equipa, o piloto informou o líder da Mercedes que ia fazer parte da equipa rival, porque “queria um novo desafio”. Wolff foi também ele surpreendido pelo facto da decisão ser incongruente com as conversas anteriores, inclusivamente nos dias que antecederam o Natal. O processo decorreu com todo o secretismo e até Toto Wolff teve conhecimento da mudança pouco antes da oficialização da mesma.
“É evidente que o momento foi surpreendente para nós. Mas acho que o que ele tentou fazer foi talvez dar-nos muito tempo para decidir o que queremos fazer no próximo ano”, disse Toto Wolff para quem “a relação pessoal” com o “amigo” não vai acabar após o anúncio da mudança. “Ele enfrentou uma situação muito difícil ao decidir onde pilotar, talvez pela primeira vez em dez anos sem poder fazer um brainstorming comigo. No futuro, discutiremos se isso poderia ter sido feito de uma maneira diferente ou não, mas não guardo rancor”.
O engenheiro de Lewis Hamilton, Peter Bonnington, foi também um dos elementos a ter conhecimento da saída do piloto antes do anúncio oficial numa videochamada com Toto Wolff. “É dia 1 de abril?”, terá sido a reação. Neste momento, Bono, como é conhecido o também membro do staff da Mercedes, pode vir a sair da equipa depois de Toto Wolff confirmar que é natural que se discuta o futuro do engenheiro.
Depois de “dias loucos” e “cheios de emoções”, Lewis Hamilton comunicou que vai realizar um objetivo de vida. “Após alcançar vários objetivos com a Mercedes que não passavam de apenas sonhos quando era criança, sinto-me incrivelmente sortudo por ter a oportunidade de concretizar outro sonho de criança: conduzir o vermelho da Ferrari”.
Piloto Lewis Hamilton assume que vai cumprir “sonho de criança” na Ferrari
Lewis Hamilton vai-se tornar no 12.º piloto britânico na Ferrari, mas, antes disso, tem ainda uma época para cumprir ao serviço da Mercedes, podendo até, em teoria, rumar à scuderia com o oitavo título mundial no bolso e com o recorde de mais títulos conquistados. Toto Wolff admite estar confiante por ver George Russell como líder da equipa no futuro e assume que Hamilton não vai ser prejudicado por isso na reta final do percurso na Mercedes.
Entretanto, as reações à união entre Hamilton e a Ferrari multiplicaram-se. “Sempre imaginei que ele, numa altura ou noutra, tentasse terminar ou pensaria em terminar a carreira na Ferrari”, assinalou Felipe Massa, antigo piloto da Ferrari que tenta por via judicial reclamar o título de 2008 que foi vencido por Hamilton. “Se ele puder contribuir com algo para a Ferrari, será sempre positivo”.
Ainda que Hamilton só se mude para a equipa liderada por Fred Vasseur em 2025, os efeitos na Ferrari já se fazem sentir. Numa publicidade de uma marca de cerveja que patrocina os italianos, foi utilizado um carro vermelho com o número 44 de Hamilton. Ao mesmo tempo, o valor de mercado da Ferrari, segundo a Bolsa de Nova Iorque, atingiu na quinta-feira um recorde de sete mil milhões de dólares.