Uma das cenas de maior tensão sexual em Vidas Passadas implica um daqueles varões para os transeuntes se segurarem quando viajam de pé no metro. Esse varão não é usado para nenhum show de strip, apenas para o propósito para que foi criado. Duas mãos, que nem sequer se tocam, ficam ali a um centímetro ou dois uma da outra. De um lado, Nora (Greta Lee, que temos visto na série Morning Show, da Apple TV+), uma sul-coreana há mais de 20 anos emigrada entre o Canadá e os Estados Unidos; do outro, Hae Sung (Teo Yoo do filme Leto), o seu melhor amigo de infância, a visitá-la pela primeira vez em carne e osso desde que esta abandonou o seu país natal. É, portanto, uma cena em que não se passa nada — mas, ao mesmo tempo, subentende-se tanta coisa que acaba por se passar tudo. É esse o tom desta obra de estreia da realizadora e argumentista Celine Song.
Celine começou a sua carreira como dramaturga, algo que acaba por se notar na estrutura de Vidas Passadas. Uma história com poucos atores, uma única linha narrativa, muito assente em diálogos e em silêncios. O resultado torna-se, assim, voyeurista. Ali estamos nós, a assistir a três momentos-chave na ligação entre os dois protagonistas. O primeiro, a infância em Seoul, na idade em que não se consegue sequer interpretar sentimentos amorosos, e a separação quando os pais de Nora (então a responder ao nome Na Young, antes de ter escolhido a sua versão em inglês) resolvem emigrar. O segundo, quando as redes sociais lhes permitem retomar contacto na vida adulta, o que depressa descamba para uma espiral de estarem constantemente em videochamada, numa relação sem contornos claros. E o terceiro, quando anos depois finalmente passeiam juntos nas ruas de Nova Iorque.
[o trailer de “Vidas Passadas”:]
Vidas Passadas entrou no seleto clube de obras de estreia nomeadas para o Óscar de Melhor Filme — onde também estão, por exemplo, as estreias de Sidney Lumet, Orson Welles, Sam Mendes ou Jordan Peele. Também conquistou a nomeação para Melhor Argumento Original, mas não têm faltado críticas pela não nomeação de Greta Lee (é um ano difícil para as nomeações de Gretas, salvo seja). É mais uma das apostas da produtora A24, que desde que venceu o Oscar por Moonlight, em 2016, que parece não dar um passo em falso que seja. Já conquistou algum estatuto de culto, nomeadamente de espectadores e críticos que enaltecem o quão “destruídos” ficaram pela choradeira que o filme lhes causou. A minha leitura é diferente, mas impossível de partilhar sem estragar Vidas Passadas a quem ainda não o viu.
Que Vidas Passadas é uma história de amor, isso é óbvio. O nome do filme vem de uma ideia de destino associada à palavra coreana 인연 (in-yeon), que implica que duas pessoas se devem cruzar oito mil vezes em vidas passadas até estarem destinadas a casar. Mas a reflexão de Celine, ela própria de ascendência coreana, é mais sobre descartar ou não uma etnia, uma cultura, uma ancestralidade, em busca de uma vida diferente. Nora está indecisa entre o marido e o amigo de infância, mas está no fundo indecisa entre ser americana ou coreana, ciente de que não é possível ter o melhor dos dois mundos. Há uma camada de Antes do Amanhecer, sim, mas há também uma discussão subentendida sobre identidade que é, afinal, o ponto mais interessante do filme. Vidas Passadas é muito simples, o que é o seu maior mérito. A simplicidade é difícil, mas aqui acerta em cheio.