A 74.ª edição do Festival de Berlim tem sido marcada pela política: Faixa de Gaza, Ucrânia, Irão, boicotes, cartas e até “passageiros” da passadeira vermelha com roupas alusivas aos deputados do partido de extrema direita alemã, AfD, que acabaram desconvidados do evento cinematográfico que decorre até ao próximo dia 25 de fevereiro. Mas, ao mesmo tempo, o cinema e o showbiz permitem sempre uma espécie de universo paralelo, e aqui a indústria norte-americana — e o respetivo star system — vai fazendo a sua performance, políticas à parte (ou nem por isso): Cillian Murphy, um dos prováveis vencedores da noite dos Óscares, veio até Berlim promover Small Things Like These, filme de abertura; e Kristen Stewart, que presidiu ao júri da Berlinale no ano passado e este ano, no mesmo mês em que protagoniza uma bombástica capa da Rolling Stone, vem defender mais um filme da A24: Love Lies Bleeding, segunda longa-metragem da britânica Rose Glass.
Já se sabe que a atriz norte-americana está a preparar um filme de sua autoria e que, ao mesmo tempo, trabalha noutro projeto, um sobre a escritora Susan Sontang, inspirado no livro Sontang: Her Life, de Ben Moser. E já se sabe também do impacto que a tal capa de revista, onde, sob o desíginio de “capa não censurada”, Kristen Stewart despertou ódios e amores, retomando uma guerra antiga com o putativo candidato republicano às eleições dos EUA, Donald Trump. O que não se sabia era como é que a atriz está a lidar com um 2024 em grande. E o que se ficou a perceber é que, apesar de Berlim quase exigir, como requisito, que as suas estrelas tomem uma posição sobre tudo e mais alguma coisa, há quem não vá por aí.
“Estava há muito tempo à espera desta conferência de imprensa para vos poder explicar o que tem acontecido depois da capa da Rolling Stone.” Em frente aos jornalistas, a atriz dá ares de quem conhece bem a casa e volta a um lugar onde já foi feliz. “Aqui é cool”, confessa. Menos quando as perguntas se viraram mais para a representatividade da comunidade LGBTQ. Nem toda a gente tem política na ponta da língua, mas este Love Lies Bleeding tem língua, sexo, violência e culturismo.
[trailer oficial do filme “Love Lies Bleeding”, que estará em Portugal distribuído pela NOS:]
Primeiro, o filme. Um thriller sobre uma mulher que se enamora de uma culturista (Katie O’Brien, que infelizmente não esteve presente na Berlinale) com desejo de sucesso em Las Vegas. Numa América desterrada, com poucos ou nenhuns sonhos, Kristen Stewart dá corpo a uma mulher que trabalha num ginásio artesanal. Dá-se mal com o pai, dá-se mal com o namorado violento da irmã (Dave Franco) e, de repente, vê-se assoberbada por uma mulher musculada, de riso contagiante e cabelo encaraculado e moreno, que a seduz logo no primeiro encontro improvisado, que a partir do sexo casual se transforma numa relação.
Treinar durante o dia, fazer sexo durante a noite. E, nas pausas, ouvir umas “homilias sobre deixar de fumar”. Só que, se estamos a olhar para um thriller, faz falta um mau da fita: pois bem, é o pai, interpretado por um caricato e tenebroso Ed Harris, que controla um campo de tiro e vende armas de fogo ilegais. Há ali um passado obscuro. E há em Love Lies Bleeding uma certeza: algo correu muito mal nesta relação de pai e filha e a respetiva não-resolução vai ter consequências.
O filme, que, apesar de tratar bem personagens pouco representadas no cinema a esta escala — quantas vezes já viu uma culturista bissexual que parte maxilares de homens? — dá pouca atenção à história em propriamente dita. Tem cenas cómicas, não tão cómicas para algumas das reações registadas pelo Observador neste festival. No entanto, tem sido ovacionado nas redes sociais e por alguma crítica pela abordagem “fresca”. Que é como quem diz, por finalmente ser a hora dos filmes queer ganharem uma maior projeção.
Só que, este domingo, Kristen Stewart, num sempre visível desconforto que parece não sair-lhe do olhar, não estava muito virada para conversas sobre inclusão ou comunidades LGBTQ. No centro da conversa na conferência de imprensa, estivera, perguntas sobre quais os filmes queer favoritos da atriz, sobre o que representava o facto deste filme conseguir chegar a festivais e ser produzido por um nome tão grande como a A24, e de quais as expectativas em relação ao público, tanto da antiga estrela da saga Twilight, como da realizadora Rose Glass, as únicas representantes oficiais de Love Lies Bleeding. “Não podemos continuar a dizer como se devem sentir, a dar palmadinhas nas costas para receber pontos por dar espaço a vozes marginalizadas. Sempre estivemos nesse tempo. A era em que se dá destaque aos filmes queer só porque são feitos, terminou. Acho que vão continuar a existir, mas é inerente ao facto de que estamos todos a avançar”, disse Kristen Stewart.
As duas foram-se desviando do ponto, preferindo não colocar o filme num lugar de pura representação de um determinado grupo de pessoas, como hoje é exigido por tantos no cinema e noutras artes. Percebe-se: estavam ali como equipa com o objetivo de falar sobre um cinema que empodere mulheres com guiões originais e não como arma de arremesso a questões sociais. Preferem, portanto, falar de Love Lies Bleeding como um processo divertido, como exemplo de química no ponto certo entre as duas atrizes principais, cmo. tiro certeiro na caricatura do sonho americano falhado, além de marcar pontos na discussão sobre o que é, afinal, o amor.
“Sim, as pessoas têm falado de várias referências [como o filme Thelma and Loise] mas, quando fiz primeiro o pitch, apresentei-o muito mal. Era um crime, meio sátira, meio thriller, sem grandes referências. Para mim, quanto ao facto deste projeto ser ou não visto como queer, não me deu mais pressão. Quis a versão mais verdadeira desta história”, revelou a realizadora, que já tinha feito Saint Maud (2019), filme que, segundo Kristen Stewart, foi dos poucos motivos pelo qual decidiu aceitar entrar nesta longa metragem.
Kristen Stewart, Rolling Stone’s March cover star, just wants to “do the gayest thing you’ve ever seen in your life.”
After more than two decades in the spotlight, she knows who she is — and what she wants.
Cover story/Photos: https://t.co/c7jbLK5gpd pic.twitter.com/ljbryy9L6x
— Rolling Stone (@RollingStone) February 14, 2024
Depois de chutar para canto as perguntas sobre representatividade, não ter grande resposta para o que é o amor e chegar a pedir que jornalistas repetissem perguntas por não perceber onde queriam chegar, Stewart desdobrou-se em elogios à Berlinale, “um festival cool onde podem estar propostas sem grande sucesso comercial”. A atriz virou a agulha para a mais recente capa de revista da Rolling Stone, que apelidou de “a coisa mais gay de sempre”. Decidiu dizer ao mundo que era homossexual durante o monólogo do programa de comédia Saturday Night Live em 2017. E ainda que mostre vontade de ser só um porta estandarte da comunidade LGBT, orgulha-se muito de ter participado naquela sessão fotográfica.
Para a protagonista de Love Lies Bleeding, trata-se de lançar uma mensagem simples: já chega de capas de revistas que só agradem a homens cis heterossexuais. “Há momentos que gostamos de colocar numa cápsula. As mulheres têm sido muito oprimidas, é bom fazer este tipo de sessões fotográficas, não faz sentido não termos mais. A que eu fiz não foi assim tão relevante”. Kristen Stewart pode até sentir desconforto neste tipo de eventos, mas é certo que está em estado de graça, dentro da sua própria personalidade. Depois de interpretar papéis como o da princesa Diana, em Spencer, e de ter entrado numa das sagas juvenis mais famosas do planeta, quer dar o salto para a sua própria história, onde cabem projetos mais autorais e histórias que envolvam aprender a enrolar corpos ou a fazer sexo oral a uma culturista. Love Lies Bleeding está apresentado. Não se sabe quando será estreado em Portugal, mas vai ter distribuição da NOS.