Chama terra a Cabo Verde, mas Nancy Vieira sempre teve um mundo de horizontes mais alargados. Nasceu na Guiné-Bissau, onde os seus pais, como tantos outros cabo-verdianos, estavam emigrados. Era 1975, a época agitada das independências. Passou os primeiros anos de vida na ilha cabo-verdiana de Santiago, depois cresceu em São Vicente, até aos 14 anos se mudar com a família para Portugal. Vive no país desde 1989 e tem construído uma carreira baseada na tradição musical cabo-verdiana, sobretudo nas mornas, levando-o a atuar um pouco por todo o globo.

Quase 30 anos depois do seu primeiro disco (Nôs Raça, de 1995), Nancy Vieira está de volta aos álbuns com Gente, que será editado a 15 de março.

Apesar da experiência e da maturidade, Nancy Vieira é acima de tudo uma intérprete. É nesse papel que mais se revê, embora seja a líder de todos os seus discos, escolhendo as canções e os músicos com quem deseja trabalhar. Desta vez, até teve uma maior preponderância ao longo do processo, uma vez que também trabalhou ativamente na produção de Gente, uma função que partilhou com Amélia Muge e António José Martins, que acompanharam e moldaram toda a construção do disco.

A ideia inicial até passava por fazer um EP de “encontros”, como explica ao Observador. “Queria juntar algumas pessoas, parceiras da música de há algum tempo, amigos, músicos com quem tenho vindo a trabalhar e outros com quem me cruzava.” Sentia a “necessidade de partilhar e materializar as ligações” que havia estabelecido com outros artistas ao longo dos anos.

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Ao mesmo tempo, estava a trabalhar noutros temas, a pensar num futuro álbum, até que fez sentido juntar tudo no mesmo projeto, misturando, não fosse Nancy Vieira de uma nação crioula. “Apesar de as outras canções não serem duetos, também representaram encontros. Porque houve contributos e parcerias com outros músicos ou arranjadores. Assim surgiu o disco, com muita gente, e que faz muito sentido estar aqui junta. Existe uma unidade.”

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Essa união que este álbum simboliza tem tudo a ver com a célebre expressão cabo-verdiana “djunta mon”, que é como quem diz “juntar as mãos”. Na origem estarão as povoações remotas, de condições precárias, em que os vizinhos se juntavam, com sentido comunitário, para construir uma casa para alguém ou para resolver o problema de um dos seus. Hoje significa simplesmente uma ação que é o resultado de um esforço conjunto, fruto de um espírito de comunhão.

Foi também isso que Nancy Vieira quis fazer com este Gente, álbum que atravessa as várias ilhas de Cabo Verde mas que ruma a Portugal e ao Brasil, passando por Angola e pela Guiné-Bissau. Talvez um dos melhores exemplos desta mescla lusófona seja o Fado Crioulo, o décimo tema do álbum, que junta Nancy Vieira com António Zambujo, com letra e música dos brasileiros Alexandre Lemos e Fred Martins. Pelo meio, ainda há uma participação especial do rapper português de origem cabo-verdiana Xullaji.

“A participação do Xullaji foi uma das ideias de reforço da palavra que vieram da Amélia Muge”, explica Nancy Vieira. “Num espaço da música em que seria um instrumento a fazer um solo, a Amélia, com todo aquele entusiasmo, apaixonou-se pela letra, pelo poema, e sentiu a necessidade de reforçar as palavras. E pensámos: por que não versos ditos em vez de cantados? E chamámos o Xullaji. Essa música será uma das grandes surpresas do disco.”

António Zambujo entra na equação pois encontra-se na lista de “cantores portugueses de eleição” de Nancy Vieira. Além disso, tinha as características certas para interpretar um Fado Crioulo. “Ele também tem um olhar — não diria crioulo, mas mais universal — da música portuguesa e do próprio fado, até porque também é alguém muito próximo do Brasil.”

Com os Fogo Fogo, banda portuguesa de funaná, teve a “ousadia” de resgatar um clássico da sua infância, Ta Cundum Cundum, eternizada por Os Tubarões. “Eles fizeram um novo arranjo e acho este encontro muito bonito, a música é contagiante.” Para evocar a sua ligação umbilical à Guiné-Bissau, trabalhou com Remna Schwarz, filho do emblemático José Carlos Schwarz, que lhe escreveu o tema Singa, partilhando a sua voz com a de Nancy Vieira.

A cantora juntou ainda esforços com o músico cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, interpretando diversos temas da sua autoria e colaborando com ele em Fidju Grandi; com os cabo-verdianos radicados em Portugal Acácia Maior, a dupla de Luís Firmino e Henrique Silva, em Nôve Kretxêu; e com o angolano Paulo Flores, numa “música cabo-verdiana com sabor a Angola”, Meditá. Interpretou ainda Rosa Sábi, escrita e composta por Amélia Muge.

“Havia a intenção de ter este caráter lusófono. Somos povos irmãos, gente próxima, mas ao mesmo tempo não gostaria de me limitar por nacionalidades. Somos gente que tem alguma coisa em comum e o principal é a linguagem da música”, explica Nancy Vieira.

Além das sonoridades, o disco é rico em línguas e sotaques. “Existem vários Cabo Verde e aqui estão as ilhas quase todas representadas, com os diferentes crioulos. Há o crioulo badiu, de Santiago, mais ligado ao funaná; temos um funamba, uma mistura de funaná com samba, no Sol Di Nha Vida, o primeiro single, também em crioulo de Santiago; e depois temos o crioulo de São Vicente na música que gravo com Acácia Maior. Na música com o Remna cantamos em crioulo da Guiné, é um crioulo que não sei falar mas que entendo, é lindíssimo e próximo do de Santiago. Acredito que os cabo-verdianos de diferentes ilhas e zonas se vão sentir identificados.”

Nas letras, Nancy Vieira não foge aos temas mais clássicos. “Acho que não há música de Cabo Verde sem saudade”, defende. “É obrigatório, sobretudo na música de cabo-verdianos que vivem fora de Cabo Verde, que é uma grande diáspora. Há tantos cabo-verdianos fora de Cabo Verde como a população residente. Portanto, o cabo-verdiano e a sua música vivem de saudade. Sofre-se um bocado, mas também existe a parte nostálgica. E não se pode fugir ao amor nas canções.”

Para si, é mais um passo no seu “caminho”, que considera uma “palavra importante”, até porque não houve o objetivo de existir aqui “uma grande mudança”. “Claro que um artista pode resolver fazer uma coisa diferente, mas esta não é uma quebra com o caminho que tenho vindo a fazer. E a Amélia e o António respeitaram muito esse caminho e introduziram cunhos próprios.”

Depois de ter sido apresentado na Alemanha, nos Países Baixos e na Polónia, este disco recheado de Gente teve uma primeira apresentação ao vivo no passado dia 8 de março no Teatro São Luiz, em Lisboa, com os tais “encontros” que deram o pontapé de partida para esta viagem. “Estou ansiosa por levar a palco as colaborações e para depois, mais tarde, apresentar o disco em Cabo Verde. As pessoas têm estado muito contentes com aquilo que já tenho mostrado e já tinham alguma saudade.”