Pode dizer-se muito sobre o que é, afinal, ser ator, mas há uma característica com a qual toda a gente concorda: é preciso ser exímio a vestir a pele de outro. Emma Stone, Emily, como prefere ser chamada, foi desafiada, mais uma vez, por Yorgos Lanthimos, realizador grego de Pobres Criaturas (que, aliás, se estreia esta quinta-feira na Disney+), a vestir um outro ser que nada tivesse a ver consigo (ou terá?). Bella Baxter, criação feminista de um outro Dr. Frankestein, extravagante, empática, provocadora, capaz, sem medo, que vai à procura de um maravilhoso mundo novo, de pé, de barco, ou com vários pastéis de nata na boca.

Emma Stone foi ovacionada depois de vencer o segundo Óscar como Melhor Atriz (o primeiro foi com La La Land, em 2017, por causa de uma personagem mirabolante onde encaixou que nem uma luva. Seria difícil escolher outra atriz que vestisse tão bem a pele de Bella. Critic Choice Awards, Globo de Ouro e agora o Óscar. E é ainda mais difícil ver alguém que tem de vestir a pele de estrela de cinema e continua a parecer uma pessoa normal que mantém o espírito infantil e só quer passar um bom bocado.

[trailer oficial do filme “Pobres Criaturas” que, depois das salas, chega dia 14 à Disney+:]

Em Pobres Criaturas, a obra mais cara de Yorgos Lanthimos até agora — está a caminho Kind of Kindness, um novo filme e a quarta colaboração com Emma Stone, depois deste último, de A Favorita e do filme mudo Bleat — a atriz dá corpo a um novo tipo de monstro de Frankestein, inspirado no livro de Alasdair Gray: uma mulher grávida que se suicidou e volta à vida depois de um cientista colocar o cérebro do recém-nascido na nova criatura. É o mais divertido, arriscado e desassombrado trabalho da norte-americana dentro do circuito do cinema mainstream.

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E para atingir o nível do absurdo a que somos apresentados, foi preciso centrar o processo nesta personagem. Que o diga Yorgos Mavropsaridis, grande colaborador e montador principal de Lanthimos, com quem o Observador já tinha conversado no verão do ano passado a propósito da sua masterclass no Festival Fest, em Espinho, e que voltou ao contacto para dar um vislumbre desta criação, no pouco tempo que tem durante as cerimónias. “A grande tarefa era contar a história da Bella Baxter. É uma personagem pouco habitual, houve muito improviso durante a rodagem. Muitos testes e erros até que conseguíssemos preencher a timeline do filme.”

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Uma mirabolante viagem por Lisboa, Alexandria ou Paris leva esta criatura a descobrir os pequenos e grandes prazeres da vida, onde se incluem muitas horas de sexo. Ou pastéis de nata (demasiados, segundo Emma Stone). Nem de propósito, num perfil do Financial Times, a atriz é descrita como alguém que “tem sido longamente atraída pela curiosidade”, tal como a criatura feminista que se move como uma marioneta em Pobres Criaturas. Nesse texto, Ed Guiney, um dos produtores do filme, revela que a aposta em Emma Stone não trouxe só créditos no fim. Sem ela, esta proposta de fazer corar o mais tímido dos espectadores, e que venceu o festival de Veneza no ano passado, podia não ter visto a luz do dia. “Como é uma grande estrela, permitiu-nos angariar o dinheiro que outros estúdios e financiadores não estavam dispostos a dar.” Dá que pensar que, aos 35 anos, Emma Stone consiga manter uma autenticidade galhofeira com um alto valor monetário para os seus bolsos. O mundo está muito sério mas, pelos vistos, ainda há lugar para um espírito eternamente jovem.

[entrevista entre Mark Ruffalo, Emma Stone e Yorgos Lanthimos para a revista “Variety”:]

“Ele é de Atenas, eu sou do Arizona, não sei como isto funciona.” A confissão veio noutro artigo, este do jornal norte-americano New York Times, a propósito da estranha colaboração entre Lanthimos, um realizador europeu que conquistou o seu espaço na grande indústria sem grandes discursos mas muito cinema, e Stone, uma atriz empática, doce, profundamente divertida, mais dedicada às comédias. Mas tem funcionado. No caso de Pobres Criaturas, e sabendo que o que se diz em campanha para os Óscares pode ter muito de marketing para apelar aos membros da Academia, Emma Stone confessa que ficou a “adorar demasiado” a personagem. Uma criatura transformada em mulher independente, que se cultiva, que aprende, que sonha, vive e explora, libertando-se das amarras dos homens obcecados por ela, tem mais a ver com a atriz do que os mais incrédulos podem pensar.

Para a preparação, Lanthimos, em quem a atriz muito confia, recorreu a algo familiar: comédia de improviso. “É criar a atmosfera, a camaradagem e divertires-te.” Não deixa de ter graça que, apesar de se sentir que este par criativo tem o seu próprio timing e dinâmica, dentro e fora do set, até nem começou da melhor maneira. Quando Lanthimos consegue furar o mainstream com Lobster (2015), passa-lhe pela cabeça convidar Emma Stone. Não o faz. A pronúncia especial das palavras fez com que o realizador grego optasse por outra via. “Nesse filme tinha uma personagem assim, mas a Emma tem uma maneira de pronunciar as palavras muito própria e não seria chamada para fazer essa personagem. Se alguém, no guião, não fosse essa personagem e tivesse isso, o filme colapsaria”, contou à Variety. Quando um filme consegue com que um espectador experimente sentir aquilo que quem interpreta sentiu atrás das câmaras, metade do trabalho está feito. Foi isso que o realizador grego conseguiu em Pobres Criaturas e é isso que melhor tem caracterizado o trajeto de Emma Stone.

Olhando para o seu passado, percebe-se que esta fase é o culminar de uma mulher que quis, mais do que tudo, ser atriz, apesar do progressivo peso do mundo aos ombros. No início dos inícios da carreira da norte-americana, podia não ser possível prever tanto sucesso. Numa recente entrevista  durante mais uma passadeira vermelha ao famoso site de cinema Letterbox, Emma Stone, quando questionada sobre o primeiro prémio que venceu, disse que o melhor tinha sido o de um concurso de soletrar. “É, ainda hoje, o prémio que tenho em casa à mostra, para toda a gente ver.” A resposta pode ser uma desilusão para os mais puristas, mas a atitude de quem ainda consegue gozar a vida dentro da máquina do estrelato cinematográfico tem sido o garante para que Emma Stone continue a fazer filmes muito diferentes uns dos outros, ultrapassando o maior desafio a que estamos confrontados se o nosso habitat for o do sistema de estrelas de cinema (ou não): a ansiedade.

Não é de estranhar que, com apenas 15 anos, tenha conseguido convencer os país a mudar-se para Los Angeles, epicentro da atividade cinematográfica. Não foi preciso chorar, inventar desculpas ou arrastá-los para fora de Arizona, sua terra natal. Bastou, imagine-se, um Power Point muito detalhado. chamado “Projeto Hollywood”, para conseguir desistir do ensino secundário e passar o resto da vida em audições. É curioso perceber que esta ingénua ambição nunca se fez notar em 16 anos de carreira mais a sério. E isto não é dito como crítica: o encontro com um certo equilíbrio mental graças à representação tem-lhe dado uma versatilidade de personagens invejável.

Tal como Bella Baxter em Pobres Criaturas, com cérebro de bebé e imensa sede por mais e mais, Emma Stone quis seguir a sua “epifania” de descobrir os encantos da representação. Não dava para ficar mais na escola. Mas nada disto podia ter sido feito sem uma enorme camada de nervos. A atriz, segundo um longo perfil da The Hollywood Reporter, aquando da sua nomeação para o filme La La Land, confessou que cresceu com os nervos à flor da pele. Timidez, ataques de pânico e terapia. O que a salvou, enquanto não se mudou para Los Angeles, foi o teatro, onde a comédia de improviso jogou um papel fundamental.

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Em 2007,  os ensinamentos do improviso ganharam um novo fôlego, quando Emma Stone participa, ao lado de Johan Hill, em Superbad com apenas 19 anos — voltariam a cruzar-se, muitos anos mais tarde, em Maniac (2018), da Netflix. Aparece a grande tela e a cor de cabelo sofre uma mudança. Em Pobres Criaturas, Bella Baxter perde-se nos livros, mapas e em tudo o que é informação, mas não muda, por um segundo, o seu objetivo. A atriz, por sugestão de um dos grandes nomes da comédia familiar moderna, o produtor e realizador Judd Apatow, deixa de ser loira para passar a ser ruiva. As dinâmicas escolares, que tinham ficado pelo  caminho na vida real, encaixaram bem no perfil de Emma Stone, tornando-se cliente habitual no género cómico — A Casa das Coelhinhas, The Rocker ou Ela é Fácil. Este último filme levou-a até Nova Iorque, o peso da fama e da indústria fazia, volta e meia, regressar a ansiedade e ataques de pânico, que começaram com apenas 7 anos e ainda se mantêm.

Não nos podemos esquecer das participações em filmes como Zombieland (2009), mortos-vivos para rir às gargalhadas com Jesse Eisenberg e Woody Harrelson, As Serviçais (2011), ao lado de Viola Davis e Octavia Spencer sobre as empregadas negras dos anos 60, e Amor, Estúpido e Louco, o início de uma frutuosa relação profissional com Ryan Gosling. E se a ansiedade esteve sempre à espreita, apesar de toda a experiência arrecada no sector, não poderá ter ficado melhor depois de Emma Stone ter entrado na famosa saga dos filmes do Homem Aranha como a namorada do herói, Gwen Stacy.

No entanto, longe dos tempos em que foi dar um pé a um episódio piloto de The Partridge Family (2004), que nunca viu a luz do dia, a Emily do Arizona, como gosta de ser chamada, faria a transição para o campo dos nomes com selo de Óscar, dos que entram na piscina dos grandes para nunca mais sair. Foi por causa de Birdman (aqui já loira, como se regressasse ao passado para uma nova etapa), de Alejandro G. Iñarritu, e da sua Sam, uma toxicodependente em recuperação a tentar reconciliar-se com o pai, que começou a desenhar a rota da estatueta dourada, ao constar na lista de nomeados para melhor atriz secundária.

Ao lado de Ryan Gosling, apenas dois anos depois, dançou, bailou e cantou em La La Land, filme que não venceu o Óscar de Melhor Filme em 2017 mas deu a Emma Stone a consagração de Melhor Atriz, dando razão à decisão de construir um power point rumo a Hollywood. Esteve próxima de repetir o feito com a primeira grande colaboração com Yorgos Lanthimos em A Favorita. Agora, em 2024, conseguiu a segunda e  fez da ansiedade um poder cada vez mais forte. “É o que digo a muitos jovens que sofrem, usem-na como um super poder“. De facto, de pobre criatura não tem mesmo nada.