De repente, fugir para a RTP2 para ver a 96.ª cerimónia de entrega dos Óscares parecia oferecer o conforto de um sentido: festejar o melhor de um ano de cinema no único canal de televisão que privilegia as artes na sua programação. E, no entanto, sabíamos que isso apenas denunciava que, naquela noite, o filme era outro: as televisões generalistas estariam inteiramente concentradas na noite eleitoral. E nem do Benfica, o mais crónico best-seller português, se falaria por aí, mesmo que tivesse acabado de fazer o que, até há bem pouco tempo, roçava a heresia: jogar em dia de eleições.
Era o quarto ano de Jimmy Kimmel na apresentação e também o quarto de regresso da transmissão à RTP, o que por sua vez significa, digam comigo: Mário Augusto. Ora, Mário, que, desta vez contou com um convidado único, o crítico César Nóbrega, posto naquele cenário discreto que não destoaria na televisão dos anos 80 (não é um insulto, sentimentalões dados à saudade nos confessamos), ainda contribuía mais para o contraste com a paradoxal lógica de espectáculo das “noites eleitorais” nas generalistas: cheios de cor, convidados, estúdios virtuais e grafismos.
E, ainda que ninguém no Dolby Theatre tivesse como saber ou sequer interesse, tudo o que se passou depois do lado de lá do mundo, algures na ensolarada Califórnia, pareceria alinhado com mesma vontade estética: encontrar no cinema um refúgio de normalidade, num tempo e numa noite em particular em que a realidade se vai tornando um lugar cada vez mais estranho.
Depois de, quase todos os anos, tentar passar por jovem, irreverente, “relevante”, como agora se diz, a lutar desesperadamente contra a perda de audiências e reinventar a roda a cada edição, a Academia aceitou, em 2024, ser simplesmente quem é: a indústria do cinema e não um concorrente do TikTiok. Sem truques, sem artifícios, sem malabarismos. Uma cerimónia sóbria, escorreita, em que nem o vídeo foi quase usado; assente no poder da palavra, do rosto, da música, do humor e da política apenas e só quando ela se impôs. Sem estalos nem trocas de envelopes, felizmente, sem impor a vontade de ser “diversa” à qualidade intrínseca de obras e artistas. Uns Óscares justos, num ano de cinema justo.
Oppenheimer deu 7-1 a Barbie, o que talvez sejam prémios a mais para o primeiro, mas não de menos para o segundo. O genial Pobres Criaturas levou quatro e o murro no estômago A Zona de Interesse dois, um a distingui-lo como melhor filme internacional e o outro o seu extraordinário trabalho de som (“Obrigado por ouvirem o nosso filme”, disse um dos premiados. Não podia ter sido mais certeiro). De resto, ninguém levou mais de uma estatueta: Anatomia de uma Queda, Os Excluídos, American Fiction, O Rapaz e a Garça, a não deixar passar em claro grandes argumentos, grandes atores e Hayao Miyazaki, que é sempre grande. Faltou qualquer coisa para Dias Perfeitos e Vidas Passadas, mas, como sempre se diz, estarem nomeados já contava como prémio.
Porque vemos os Óscares?, perguntava-se numa peça recorrente que ia passando nos intervalos. Pelo discurso comovido e comovente de Da’Vine Joy Randolph, agradecendo a quem nos aparece no caminho para nos levar na direção certa, aquela que talvez nunca tivéssemos descoberto sozinhos. Por Robert Downey Jr. a agradecer, enfim, o primeiro Óscar à sua “infância terrível e à academia… por esta ordem”. À sala em peso a desejar bom dia da mãe a Yoko Ono, a pedido do filho Sean Ono Lennon, a propósito da vitória da curta de animação: War is OverI. Ryan Gosling a transformar uma cerimónia de smokings e vestidos longos num concerto rock com a performance de I’m Just Ken – e a aparição surpresa de Slash. Emma Stone a agradecer o Óscar pela Bella Baxter que deu ao mundo e nunca esqueceremos e a travar-se de emoções com o vestido que estragou “certamente durante o I’m Just Ken!”
A emocionadíssima Sandra Hüller que não venceu, mas foi talvez a segunda e terceira melhor atrizes do ano (em Anatomia de uma Queda e A Zona de Interesse). Justine Triet agradecendo o Óscar de melhor argumento original por Anatomia de uma Queda, esperando que a “ajude a lidar com a crise de meia-idade”. Cord Jefferson, segurando a outra estatueta para o argumento, este pelo adaptado em American Fiction, pedindo que, em vez de filmes de 200 milhões de dólares, se façam 20 de 10 e agradecendo a quem confiou num “negro quarentão que nunca tinha realizado nada”.
Jonathan Glazer trazendo a guerra em Gaza para a discussão e a necessidade de resistirmos à desumanização, e Mstyslav Chernov, realizador de 20 Dias em Mariupol, vencedor do Óscar para melhor documentário e “único realizador em palco que preferia nunca ter feito o seu filme”, a guerra da Ucrânia: “Não posso mudar a história, o passado. Mas todos juntos – estão aqui algumas das pessoas mais talentosas do mundo – podemos garantir que a verdade prevalecerá. E que as pessoas de Mariupol nunca serão esquecidas. O cinema forma memórias, e as memórias formam a história.”
Mais à frente, abrindo o In Memoriam, a recordação de Alexei Navalny noutro documentário vencedor de um Óscar ainda bem recente, retomaria este assunto e este dever partilhado.
Mais memórias que ficarão: o delicioso reencontro de Arnold Schwarzenegger e Danny DeVito em palco e com Batman, aliás, Michael Keaton, na plateia: “You’ve got a nerve…” O abraço de Spielberg e Nolan como quem passa um testemunho – a dura responsabilidade de tentar dar a ver em cada filme algo que um mundo que acha que já sabe tudo nunca viu. A canção de Billie Eilish que lhe valeu um segundo e merecido Óscar aos 22 anos de vida. A consagração de Emma Thomas, “produtora de todos os nossos filmes e de todos os nossos filhos”, como muito mais do que a senhora Nolan.
E porque, este ano, a cerimónia começou uma boa hora mais cedo, eram umas não demasiado impróprias duas e 25 da manhã quando tudo acabou e voltámos, brevemente, ao estúdio da RTP2. Nos outros canais, ainda se fazia contas à menos clarificadora noite eleitoral dos últimos quase 40 anos de democracia no país. Mas, como do outro lado disse então a fechar Mário Augusto, “the shô must go one”.
Continuemos, pois.