Aliu Baio nasceu na Guiné-Bissau, em 1994, mas desde os 9 anos que vive em Portugal. Aos quatro começou a ficar cego, devido a um acidente, durante a guerra civil que assolou o país entre 1998 e 2002, e aos onze, já em solo português (para onde viajou com vista a tratamento) perdeu a totalidade da sua visão. A memória visual que ainda lhe surge em sonhos leva-o até ao continente africano, mas também aos primeiros momentos vividos em Portugal. O seu lugar de pertença, como diz, está num limbo: “As memórias visuais pertencem à aldeia. Uma parte de mim pertence a Bissau. Mas a maioria pertence a Lisboa, Portugal”. A sua história é agora recontada nas suas próprias palavras em Belonging, a nova criação da performer e colecionadora Raquel André, que além de Aliu convoca outras narrativas sobre esse sentimento que está, afinal de contas, presente em todos nós. O espetáculo sobe ao palco do Teatro Municipal do Porto esta sexta e este sábado, dias 15 e 16 de março.
Dando continuidade à sua metodologia de trabalho – um processo de encontrar pessoas e partilhar histórias – Raquel André e a sua equipa encontraram-se com pessoas da Guiné-Bissau, México, Brasil, Portugal, Japão e Alemanha, para conversarem sobre pertença. No total, o espetáculo que junta vídeo e música ao vivo, reúne os testemunhos de 15 pessoas, incluindo as histórias partilhadas pelas pessoas que a própria artista juntou para este processo de investigação.
No início de Belonging existia, no entanto, uma premissa inusitada. Raquel e a sua equipa dirigiram-se à Cidade do México para encontrar a Sandra Romero Hidalgo, investigadora de genoma humano e consultora científica com quem Raquel trabalha em colaboração desde 2020, numa pesquisa artística e científica sobre o sentimento de pertença na relação com os testes de ADN. “Ela é uma ativista destes testes de ADN e na altura, impactada por essa dimensão, decidi eu própria enviar os meus dados para três laboratórios e os resultados foram completamente diferentes entre si”, explica a criadora. A diversidade desses dados, completa Raquel André, explica-se pelo facto destes laboratórios estarem limitados aos repositórios que os mesmos já possuem.
Mesmo perante os resultados inesperados, Raquel encontrou-se com dez pessoas com quem partilhava esse código e, ainda no México começou a documentar encontros com outras pessoas que realizaram testes de ADN e cujas suas histórias de vida atravessam questões sobre ancestralidade, geopolítica, cultura e identidade. Mas decidiu não ficar por aí. “A certa altura comecei a perceber que valia a pena complexificar esta ideia para falar de pertença, não apenas na perspetiva destes testes e do que eles nos dizem”. Foi o início da viagem através da qual começou a estruturar a sua nova criação, realçou ainda.
Arrumado o assunto do ADN, que passou apenas a ser uma das premissas a explorar pelo projeto, Raquel André juntou então a seguinte questão: “A quem, a quê ou onde sentes que pertences?” Colocou-a à primeiro à sua equipa, composta por Bernardo de Almeida, Gisela Casimiro, Francisco Fidalgo, Herlander, Wilma Moutinho, José António Tenente, Missanga e Aliu Baio. Rapidamente percebeu a multiplicidade de respostas que poderia receber. “Fui ao encontro de pessoas com diferentes experiências de vida, que pudessem dar respostas diferentes a esta pergunta. Foi aí que conheci o Aliu e percebi o quão importante era contar estas histórias, pela singularidade de cada uma delas”, sintetiza.
A partir deste momento, explica Raquel André, iniciou-se um processo de mapeamento e de recolha de testemunhos. “Ainda assim trata-se apenas de um recorte. Há muitas outras histórias e de facto qualquer pessoa terá uma resposta diferente quando é confrontada com esta interrogação”, completa. Para criar uma metodologia, o trabalho começou na própria equipa, o que para quase todos acabou por ser uma experiência catártica e de redescoberta. Foi o que sucedeu no caso do performer e músico Herlander: “Quando fui confrontado com esta questão, rapidamente me apercebi que era um puzzle em que se acrescenta outras histórias e em que consegues perceber um pouco mais de ti. Faz-te repensar na tua própria resposta”.
Efetivamente, há muitas perspetivas sobre o que é um lugar ou simplesmente um sentimento de pertença. Há pessoas que associam o seu lugar de pertença a um lugar, outras a um país, mas também há respostas mais subjetivas. “Para algumas pessoas a resposta pode ser ‘música’ ou ‘natureza’, e a verdade é que essa resposta pode mudar de dia para dia”, salienta Herlander. Noutras das histórias partilhadas, está a da escritora Gisela Casimiro. Também ela nasceu na Guiné-Bissau, veio para Portugal aos 3 anos de idade, e foi também nesta viagem que conheceu o lugar onde nasceu e onde pode escutar histórias da sua família que até agora não tinha tido oportunidade de conhecer.
“Esta viagem fez-me repensar quem é que eu teria sido se tivesse ficado na Guiné-Bissau. Seria eu à mesma, mas estar neste lugar permitiu-me aceder a partes e códigos que se ligam à memória coletiva”, diz Gisela Casimiro. “Com aquela viagem percebi que gostava de ter tido outras partes que são essenciais, mas nesse caminho ganhei outras… quando voltei demorei algum tempo até conseguir falar sobre o assunto, até como pessoa negra, porque constantemente o nosso lugar está a ser questionado”, sublinha ainda. O espetáculo de Raquel André, ao juntar algumas destas histórias, assume também um lado de reflexão sobre as migrações e o passado colonial de vários países, nomeadamente Portugal, tendo em conta que esse mesmo passado altera, em muitos casos, o sentimento de pertença para muitas pessoas.
Voltamos à criação de Raquel André: sozinho em palco, a tocar a sua bateria, Aliu Baio vai criando uma banda sonora emotiva e ritmada para as histórias e os encontros que se contam. À medida que se escutam os diversos testemunhos, também o espetador é levado a pensar na questão lançada pela criadora portuguesa e nas respostas que daria. “Estas pessoas documentadas em vídeo, com experiências de vida e culturas diferentes contam histórias de pertença e põe-nos a pensar afinal a quem, a onde ou ao quê sentimos que pertencemos”, sustenta Raquel André.
Também por isso, a viagem que nos propõe Raquel André e a sua equipa é poética, mas assume-se, paralelamente, como forma de diagnóstico sobre o mundo em que vivemos hoje, tantas vezes definido de forma violenta pelas fronteiras físicas e simbólicas. “Falta-nos empatia e muitas destas histórias mostram como todos temos as mesmas questões essenciais”, diz. Nem o lugar, nem o sentimento nos define, dir-se-ia, sobretudo quando escutamos estas narrativas. Por isso mesmo Belonging é também uma forma de mostrar como por mais diferenças que existam entre cada indivíduo, fazemos todos parte da mesma viagem existencial.