Kat Sadler liga à irmã (Lizzie Davidson) durante a pandemia e conta-lhe como, há uns tempos, se tentou matar duas vezes e acabou eventualmente internada. Lizzie confessa que tem uma dívida secreta de vinte mil libras. Abriram-se uma à outra, riram-se e, nesse ato, Kat Sadler percebeu que se calhar podia fazer disto qualquer coisa. Três anos depois, Sadler, que até então tinha carreira como comediante e argumentista, mas nada de realmente assinável a acontecer, estrearia a sua primeira série. Co-produção da A24, Such Brave Girls passou em novembro passado na BBC com boas críticas a acompanhar. Os seis episódios estão disponíveis no Filmin a partir desta terça-feira, 19 de março.
Such Brave Girls alinha-se com Fleabag, uma série em que uma criadora dá o corpo (e vida) ao manifesto para a tornar ficção. A vida de Phoebe Waller-Bridge não estava na realidade de Fleabag, porque o que importava ali era a abstração geracional dos que estavam nos trintas, sem grandes planos para o futuro e com um presente assente em trabalhos sem sentido (o café que a protagonista gere é das melhores metáforas da ficção televisiva contemporânea) — além de relações que se forçam a falências técnicas, porque complica-se de mais em encontrar o outro, em fazer amigos. Such Brave Girls sente-se na pele, está na linha da também brilhante In My Skin (2020), pela forma como resgata a ideia de cinema social britânico e a adapta para uma série na atualidade.
A criação de Kat Sadler não é tão brutal e angustiante como In My Skin, mas uma comédia cheia de subtilezas que repete vezes e vezes ideias (e até piadas) para que o espectador não se esqueça da prisão — e, de certa forma, miséria — em que as personagens se encontram. A criadora abstrai-se de mostrar ou explorar detalhes do dia-a-dia para evidenciar a perda de humanidade daquela família. Faz isso acontecer através de um estrondoso efeito de disco riscado, ideias e pensamentos recorrentes das personagens: como mantras para validar possibilidades de que têm solução para saírem de onde se encontram.
[o trailer de “Such Brave Girls”:]
E quem são elas? Kat e Lizzie, irmãs na vida real, são também irmãs na ficção: Josie e Billie Johnson. Josie é a mais velha, filha não desejada, já se tentou suicidar, vive deprimida e gozar com ela faz parte do dia-a-dia familiar. Billie, a mais nova, é resultado de uma relação que nunca deveria ter existido e, por isso, tem um graves problemas com a figura masculina, expressada pela relação para lá de tóxica com o suposto namorado, Nicky (Sam Buchanan), um traficantezinho de droga que quer abrir um bar em Manchester. A mãe, Deb (Louise Brealey), já aprendeu a viver com uma eloquência única para ignorar os problemas e mentir; a única coisa que deseja é sair dali, daquela vida que o marido lhe deixou: dívidas e duas filhas que abandonou, há dez anos, quando saiu para ir comprar chá e nunca mais voltou.
Quando as conhecemos, Deb está no início de uma relação com Seb (Freddie Meredith). Este homem, a recuperar da morte da mulher, parece a porta de saída para Deb e para as filhas: tem uma casa grande e, viremos a saber lá mais para a frente, com chão aquecido. O mundo das Johnson é particular e, talvez por isso, os dois primeiros episódios sejam um choque e seja algo difícil perceber onde está a comédia ali. As três mulheres falam com pouco amor, há um grande desligamento afetivo, como se a ausência do pai as tivesse tornado inimigas mas, em simultâneo, precisassem de todas para sobreviver. Até porque, como a dado momento Josie e Billie tornam bem evidente, elas não têm amigas para lá do que têm em casa.
Vidas tristes? É curioso que nunca pensemos nisso. Such Brave Girls acontece a um ritmo tão exigente que não dá espaço para julgamento. Vive-se e deixa o espectador perceber as coisas primeiro, para depois as tornar evidentes. O caso mais óbvio é o comportamento de Seb com o dinheiro, a série vai criando momentos para se perceber que Seb nunca tira dinheiro da carteira para pagar seja o que for. Há uma série de razões para se notar isso, em parte porque Kat Sadler quer que isso se note antes que seja um assunto. E, quando o é, o espectador já construiu as suas próprias ideias, razões e dúvidas sobre Seb e faz com que questione os atos da personagem e as reais motivações.
Ao longo dos seis episódios pouco melhora, pouco piora. É como se a vida das Johnson fosse algo cíclico e ao espectador é dada uma janela de tempo para perceber como aquelas personagens vivem, como agem, como se comportam e, em última instância, parecem condenadas a uma forma de existir. Seja a sexualidade de Josie (o seu namorado é uma criação brilhante, parece uma entidade imaginária nascida do absurdo que para ali vai) ou a impossibilidade de Billie reconhecer uma total ausência de autoestima. Ou o facto de a mãe Deb só ver uma porta de saída através de um homem e estar disposta a tudo o que está ao seu alcance (por via da mentira) para manter essa porta aberta.
Quando Kat e Lizzie se riram ao telefone, talvez tenham percebido que não precisavam de viver condenadas a uma forma de existir. A experiência de vida de Kat passou para a ficção e, ao contrário de Deb, encontrou uma porta de saída para a sua vida. Em retrospetiva, e vendo o resultado de Such Brave Girls e o sucesso que teve, tem uma certa piada que as personagens estejam presas numa situação tão desesperante. É difícil falar da miséria (não só de pobreza, mas também existencial) de uma forma tão catártica e que a catarse seja um elemento ativo da experiência de ver Such Brave Girls. Lembra-se daquele jantar desconfortável (e memorável) no início da segunda temporada de Fleabag? Kat Sadler faz disso brincadeira de miúdos com uma refeição que inclui abortos, esperanças de masturbação, piadas más com um terminal de multibanco e uma personagem a tentar o suicídio enfiando a cabeça na sanita. Saudades de uma comédia britânica? Ei-la aqui no seu esplendor.