Depois do notável e muito premiado Drive My Car (entre outros, ganhou o Prémio de Melhor Argumento no Festival de Cannes de 2021, e o Óscar de Melhor Filme Internacional), em que Ryûsuke Hamaguchi se revela na mais plena posse dos seus talentos cinematográficos e que pode ser visto como o corolário de filmes anteriores como Happy Hour: Hora Feliz e Roda da Fortuna e da Fantasia, as expectativas para a próxima fita do cineasta japonês eram naturalmente muito altas. Mas apesar de ter sido distinguido com o Prémio do Júri no Festival de Veneza, O Mal Não Está Aqui é uma deceção.

A isto não é alheio o facto de O Mal Não Está Aqui ter começado por ser uma colaboração com a cantora e compositora Eiko Ishibashi, autora da banda sonora de Drive My Car, uma peça visual sem palavras, rodada para acompanhar e ilustrar os espectáculos daquela. Hamaguchi sentiu então que havia potencial narrativo nas imagens, e rodou mais uma série de sequências com um enredo e personagens, que redundou em O Mal Não Está Aqui. Ao mesmo tempo, o realizador fez Gift, uma versão sem palavras que será estreada em outubro, no Festival de Cinema de Ghent, na Bélgica, e irá servir de acompanhamento visual aos concertos de Ishibashi.

[Veja o trailer de “O Mal Não Está Aqui”:]

O filme deixa a impressão de ser uma ficção forçadamente enxertada num projeto conceptual, de delineamento abstrato e lírico, e é parco numa das principais qualidades do cineasta. Os diálogos ricos e vivos, a conversa abundante que Ryûsuke Hamaguchi usa como poucos para servir de revelador da interioridade das personagens, das suas disposições mentais e emocionais, e da forma como se relacionam umas com as outras; bem como para sublimar, nos momentos-chave dos enredos, as suas frustrações e dores mais carregadas ou mais inconfessáveis (ver os clímaxes de Happy Hour: Hora Feliz ou de Drive My Car). E que precisam de tempo para se desenvolver, o que aqui não há, ao contrário de uma presença mais visível e expressa da câmara.

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O Mal Não Está Aqui (título enigmático, e de que o filme é correlativo) passa-se numa aldeiazinha nos arredores de Tóquio, onde vivem Takumi, um faz-tudo, e a sua filha Hana. Os poucos habitantes tomam conhecimento que uma empresa de Tóquio comprou um grande terreno na floresta, onde vai construir um campismo de luxo (ou glamping) para os citadinos. Numa reunião com dois representantes da companhia, que são na realidade empregados de uma agência de talentos que presta também serviços de relações públicas, os locais chamam a atenção destes para as características da fossa séptica do campismo, e o lugar onde está previsto ser instalada, que levará à contaminação das águas da zona e prejudicará gravemente as suas vidas.

[Veja uma entrevista com o realizador:]

Hamaguchi não parece interessado em rodar um drama ecológico de “mensagem”, indignado e estridente, tendo no centro um confronto simplista entre aldeões virtuosos que vivem em equilíbrio com a natureza, e malvados representantes de uma grande empresa que vêm poluir o ambiente e estragar a vida àqueles. Na reunião, Takumi até informa os seus dois interlocutores que a área só foi povoada após a II Guerra Mundial, no âmbito de um plano do governo para a tornar cultivável, e que ele e os vizinhos já interferiram com o ambiente pela sua presença; e o casal de enviados, longe de ser diabolizado, é mostrado sob uma luz simpática e compreensiva. Um deles até se diz desconfortável com as suas atuais funções e quer mudar de vida.

Denunciando a sua origem não-narrativa e complementar de um projeto musical, O Mal Não Está Aqui abunda em digressões, notações e sugestões visuais ligadas à natureza, e intimamente associadas à música de Eiko Ishibashi. E o seu ténue fio de enredo vai ter uma resolução abrupta e opaca, que poderá ter a ver com uma súbita cólera de Takumi ao descobrir outra cria de veado morta a tiro e ver a filha numa possível situação de perigo, pela presença também de um veado adulto. Ou então o realizador improvisou este fim inesperado e fosco, para que seja o espectador a dar-lhe o sentido que não está lá. É uma conclusão pouco satisfatória para um filme que sabe a inconsequente. Ryûsuke Hamaguchi quis, compreensivelmente, seguir Drive My Car com algo completamente diferente, mas perdeu-se na natureza.