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Esta não é uma história da Revolução: era uma vez a Mãe das Liberdades e as suas três filhas

Este artigo tem mais de 6 meses

A peça de Hugo Mestre Amaro acompanha três gémeas nascidas a 25 de abril de 1974 e da sua família. Pelo meio reflete-se sobre a história do país e da democracia. Estreia-se dia 3 no Teatro do Bairro.

A nova criação, que tanto espelhas as diferenças geracionais e ideológicas, como nos interroga sobre os valores de Abril, surgiu de um convite do Teatro do Bairro feito ao encenador, como mote celebrativo
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A nova criação, que tanto espelhas as diferenças geracionais e ideológicas, como nos interroga sobre os valores de Abril, surgiu de um convite do Teatro do Bairro feito ao encenador, como mote celebrativo

A nova criação, que tanto espelhas as diferenças geracionais e ideológicas, como nos interroga sobre os valores de Abril, surgiu de um convite do Teatro do Bairro feito ao encenador, como mote celebrativo

Na mesa da sala está um bolo de aniversário. Acendem-se as velas e canta-se a canção dos parabéns tendo como melodia de fundo o hino do MFA. Três irmãs gémeas, Maria da Liberdade, Liberdade Maria e Aurora da Liberdade, nascidas a 25 de Abril de 1974, em pleno Largo do Carmo, onde a Revolução dos Cravos deu o seu passo decisivo, celebram em simultâneo o seu quinquagésimo aniversário e a efeméride. É da história destas irmãs que partimos para se traçar um retrato do país e da sua democracia ao longo das últimas décadas – para melhor e pior. São o mote “íntimo e familiar” que envolve a nova peça de Hugo Mestre Amaro, Liberdade É Uma Maluca, que sobe ao palco do Teatro do Bairro, em Lisboa, de 3 a 21 de abril.

A nova criação, que tanto espelhas as diferenças geracionais e ideológicas, como nos interroga sobre os valores de Abril, surgiu de um convite do Teatro do Bairro feito ao encenador, como mote celebrativo. Com a marca dos 50 anos da revolução portuguesa em mente, Hugo Mestre Amaro optou por criar uma peça-diagnóstico orientada para a atual polarização da sociedade portuguesa. “Não me interessava voltar a contar a história da revolução, ou fazer um espetáculo baladeiro e de cravo ao peito”. Nas contradições e até mesmo na forma como cada uma das personagens olha para o evento histórico e o desenvolvimento do país ao longo dos anos, disputa-se jogo reflexivo com a palavra e o sentido dessa mesma liberdade conquistada com o derrubar do Estado Novo.

Como em tudo, existe, uma revirar da moeda. “Sou cínico em relação à ideia de liberdade, no seu todo, e isso reflete a forma como vejo o nosso país, sobretudo depois destas últimas eleições. A liberdade é aquilo que tanto lutámos para conquistar, mas que a qualquer momento podemos perder, sem nos darmos conta disso”, completa o encenador ao Observador. Pelo meio desta sátira evidencia-se o impacto de algumas decisões políticas e ocorrências sociais no contexto da vida privada, e faz-se um apanhado de muitos momentos (e personalidades) importantes na história do país. De igual forma, explica o criador, as suas personagens são um naipe, onde se assumem visões de alguma forma estereotipadas, mas também “caleidoscópicas” daquela que foi a história de Portugal desde aquele momento de viragem.

Conjugando a premissa familiar e da esfera privada com a história pública do país, Hugo Mestre Amaro construiu uma peça onde são muitas as referências que servem de eco à realidade

Mas voltemos à casa onde toda a ação se desenvolve. Podemos estar num qualquer bairro característico de Lisboa, de uma família portuguesa, com várias gerações reunidas. A Mãe das Liberdades, à época revolucionária e jornalista, é hoje matriarca de setenta anos e que, atualmente, dá a toda a família um porto seguro para viver. As filhas, por seu lado, “concebidas na opressão”, revelam as diferentes visões e caminhos que essa revolução anteviu para o país. Maria da Liberdade é apelidada de reacionária, conservadora e religiosa; Aurora da Liberdade, é vedeta da televisão casada com um político corrupto, obcecada pelo dinheiro; e Liberdade Maria, idealista e feminista, ainda hoje bastante marcada pelos valores revolucionários.

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Um rapaz jovem, o Filho da Liberdade, filho de Liberdade Maria e de Camarada, chega, entretanto, a casa. Foi detido pela polícia por uma suspeita de pedofilia, acusação injusta segundo ele, e usa agora uma pulseira eletrónica, que o remete aquele mesmo espaço de vivência. 50 anos depois daquele histórico acontecimento e dos nascimentos das três filhas, é naquele mesmo espaço pertencente à mãe que se fala do que falta afinal fazer para cumprir abril. Mas talvez essa seja uma questão demasiado complexa para aquela família e até mesmo para o país que ainda hoje se interroga. Lá chegaremos.

Enquanto houver estrada para andar

Conjugando a premissa familiar e da esfera privada com a história pública do país, Hugo Mestre Amaro construiu uma peça onde são muitas as referências que servem de eco à realidade. Um imaginário coletivo resgatado, onde se fala de um político preso em Évora, do desaparecimento de Madeleine McCann ou da Expo 98. “No fundo decidi recorrer a esta arquivo comum a que todos podemos aceder e que se transforma numa espécie de sinédoque entre o que é particular e geral. Interessa-me a história da vida privada. Senti que devia contar esta história, mas ao mesmo tempo fazer eco com uma série de acontecimento que marcaram as diferentes personagens”, salienta o encenador.

“Todos passamos por essa espécie de purgatório, onde a realidade nos parece estranha e por vezes parece que precisamos de um soro da verdade ou de realidade que nos traga de volta à plena consciência”, sintetiza o criador

A peça cruza igualmente elementos mais realistas, com momentos mais surrealistas, onde podemos facilmente entrar na dimensão do sonho. De uma mistura fatal de medronho com CBD, toda a narrativa chega a um momento de alteridade, marcado pela chegada de um inspetor inseto que interroga os residentes da casa. “Toda a gente é potencialmente criminosa e todos somos juízes”, diz-nos Hugo Mestre Amaro, como forma de justificar essa escolha kafkiana – a mesma com que por vezes olhamos para a revolução de Abril, agora volvidas cinco décadas, sustenta ainda.

“Todos passamos por essa espécie de purgatório, onde a realidade nos parece estranha e por vezes parece que precisamos de um soro da verdade ou de realidade que nos traga de volta à plena consciência”, sintetiza o criador. Por momentos, voltamos a centrar as nossas atenções no jovem rapaz que, como refere Hugo Mestre Amaro, sustenta muita da sua crença e visão atual sobre o estado do país. Num discurso, em certa medida niilista, Filho da Liberdade, espelha o seu conflito como herdeiro dessa mesma revolução. “Da revolução que devolveu a voz a este país. Mas que voz, digam-me? Há uma voz concreta, afinada, consistente, firmada e firme? Uma voz que me seja inegável e que me faça sentir, se dela for dissonante, um alienado ou um obsoleto; uma voz que, com integridade, permita até o seu contraditório? Há uma voz que me ponha no lugar? Que lugar é o meu? Que lugar é este?”, interroga-se.

O jovem diz que votou em branco, procura uma forma de se amparar, mas olha para o povo como “folha em branco onde tem sido escrita a agenda, cada vez mais escarrapachada, clara e manigante, destes senhores a quem a liberdade foi, até parece que de mão beijada, entregue”. Sem futuro, nem grandes expectativas. É deste discurso que parte também a reflexão final do encenador: “na arte que produzo tento lidar com ingredientes que procuram respostas e uma praxis da ordem do belo, mas também da ordem do filosófico”, diz. Não é à toa que, como cantou Jorge Palma, a liberdade é uma maluca, ainda que não possamos ser aprisionados pelo seu mau uso, acrescenta: “Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar, tal como diz a canção”.

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