Na mesa da sala está um bolo de aniversário. Acendem-se as velas e canta-se a canção dos parabéns tendo como melodia de fundo o hino do MFA. Três irmãs gémeas, Maria da Liberdade, Liberdade Maria e Aurora da Liberdade, nascidas a 25 de Abril de 1974, em pleno Largo do Carmo, onde a Revolução dos Cravos deu o seu passo decisivo, celebram em simultâneo o seu quinquagésimo aniversário e a efeméride. É da história destas irmãs que partimos para se traçar um retrato do país e da sua democracia ao longo das últimas décadas – para melhor e pior. São o mote “íntimo e familiar” que envolve a nova peça de Hugo Mestre Amaro, Liberdade É Uma Maluca, que sobe ao palco do Teatro do Bairro, em Lisboa, de 3 a 21 de abril.
A nova criação, que tanto espelhas as diferenças geracionais e ideológicas, como nos interroga sobre os valores de Abril, surgiu de um convite do Teatro do Bairro feito ao encenador, como mote celebrativo. Com a marca dos 50 anos da revolução portuguesa em mente, Hugo Mestre Amaro optou por criar uma peça-diagnóstico orientada para a atual polarização da sociedade portuguesa. “Não me interessava voltar a contar a história da revolução, ou fazer um espetáculo baladeiro e de cravo ao peito”. Nas contradições e até mesmo na forma como cada uma das personagens olha para o evento histórico e o desenvolvimento do país ao longo dos anos, disputa-se jogo reflexivo com a palavra e o sentido dessa mesma liberdade conquistada com o derrubar do Estado Novo.
Como em tudo, existe, uma revirar da moeda. “Sou cínico em relação à ideia de liberdade, no seu todo, e isso reflete a forma como vejo o nosso país, sobretudo depois destas últimas eleições. A liberdade é aquilo que tanto lutámos para conquistar, mas que a qualquer momento podemos perder, sem nos darmos conta disso”, completa o encenador ao Observador. Pelo meio desta sátira evidencia-se o impacto de algumas decisões políticas e ocorrências sociais no contexto da vida privada, e faz-se um apanhado de muitos momentos (e personalidades) importantes na história do país. De igual forma, explica o criador, as suas personagens são um naipe, onde se assumem visões de alguma forma estereotipadas, mas também “caleidoscópicas” daquela que foi a história de Portugal desde aquele momento de viragem.
Mas voltemos à casa onde toda a ação se desenvolve. Podemos estar num qualquer bairro característico de Lisboa, de uma família portuguesa, com várias gerações reunidas. A Mãe das Liberdades, à época revolucionária e jornalista, é hoje matriarca de setenta anos e que, atualmente, dá a toda a família um porto seguro para viver. As filhas, por seu lado, “concebidas na opressão”, revelam as diferentes visões e caminhos que essa revolução anteviu para o país. Maria da Liberdade é apelidada de reacionária, conservadora e religiosa; Aurora da Liberdade, é vedeta da televisão casada com um político corrupto, obcecada pelo dinheiro; e Liberdade Maria, idealista e feminista, ainda hoje bastante marcada pelos valores revolucionários.
Um rapaz jovem, o Filho da Liberdade, filho de Liberdade Maria e de Camarada, chega, entretanto, a casa. Foi detido pela polícia por uma suspeita de pedofilia, acusação injusta segundo ele, e usa agora uma pulseira eletrónica, que o remete aquele mesmo espaço de vivência. 50 anos depois daquele histórico acontecimento e dos nascimentos das três filhas, é naquele mesmo espaço pertencente à mãe que se fala do que falta afinal fazer para cumprir abril. Mas talvez essa seja uma questão demasiado complexa para aquela família e até mesmo para o país que ainda hoje se interroga. Lá chegaremos.
Enquanto houver estrada para andar
Conjugando a premissa familiar e da esfera privada com a história pública do país, Hugo Mestre Amaro construiu uma peça onde são muitas as referências que servem de eco à realidade. Um imaginário coletivo resgatado, onde se fala de um político preso em Évora, do desaparecimento de Madeleine McCann ou da Expo 98. “No fundo decidi recorrer a esta arquivo comum a que todos podemos aceder e que se transforma numa espécie de sinédoque entre o que é particular e geral. Interessa-me a história da vida privada. Senti que devia contar esta história, mas ao mesmo tempo fazer eco com uma série de acontecimento que marcaram as diferentes personagens”, salienta o encenador.
A peça cruza igualmente elementos mais realistas, com momentos mais surrealistas, onde podemos facilmente entrar na dimensão do sonho. De uma mistura fatal de medronho com CBD, toda a narrativa chega a um momento de alteridade, marcado pela chegada de um inspetor inseto que interroga os residentes da casa. “Toda a gente é potencialmente criminosa e todos somos juízes”, diz-nos Hugo Mestre Amaro, como forma de justificar essa escolha kafkiana – a mesma com que por vezes olhamos para a revolução de Abril, agora volvidas cinco décadas, sustenta ainda.
“Todos passamos por essa espécie de purgatório, onde a realidade nos parece estranha e por vezes parece que precisamos de um soro da verdade ou de realidade que nos traga de volta à plena consciência”, sintetiza o criador. Por momentos, voltamos a centrar as nossas atenções no jovem rapaz que, como refere Hugo Mestre Amaro, sustenta muita da sua crença e visão atual sobre o estado do país. Num discurso, em certa medida niilista, Filho da Liberdade, espelha o seu conflito como herdeiro dessa mesma revolução. “Da revolução que devolveu a voz a este país. Mas que voz, digam-me? Há uma voz concreta, afinada, consistente, firmada e firme? Uma voz que me seja inegável e que me faça sentir, se dela for dissonante, um alienado ou um obsoleto; uma voz que, com integridade, permita até o seu contraditório? Há uma voz que me ponha no lugar? Que lugar é o meu? Que lugar é este?”, interroga-se.
O jovem diz que votou em branco, procura uma forma de se amparar, mas olha para o povo como “folha em branco onde tem sido escrita a agenda, cada vez mais escarrapachada, clara e manigante, destes senhores a quem a liberdade foi, até parece que de mão beijada, entregue”. Sem futuro, nem grandes expectativas. É deste discurso que parte também a reflexão final do encenador: “na arte que produzo tento lidar com ingredientes que procuram respostas e uma praxis da ordem do belo, mas também da ordem do filosófico”, diz. Não é à toa que, como cantou Jorge Palma, a liberdade é uma maluca, ainda que não possamos ser aprisionados pelo seu mau uso, acrescenta: “Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar, tal como diz a canção”.