Amy Winehouse morreu de intoxicação alcoólica aos 27 anos, em 2011, deixando, em vida, dois álbuns, uma carreira musical tão breve quanto brilhante, um estilo vocal único e uma imagem fortemente distintiva. As tentativas de rodar um filme biográfico sobre ela começaram logo depois do seu desaparecimento. Uma delas, com Noomi Rapace no papel da cantora, quase que foi para a frente em 2015, ano em que o realizador Asif Kapadia (Senna, Diego Maradona) estreou o seu muito bem investigado, documentado e completíssimo documentário, Amy, que entre outros ganhou o Óscar e o Prémio do Cinema Europeu da respectiva categoria.

A extensão e profundidade documental, e o sucesso de Amy não secaram tudo em seu redor. Várias produtoras continuaram a insistir no projeto de um filme biográfico, finalmente anunciado em 2022 e intitulado Back to Black, tal como o segundo e último álbum de estúdio de Winehouse, contando com a autorização e a colaboração dos herdeiros da cantora, bem como da fundação com o seu nome, e realizado por Sam Taylor-Johnson. Autora de Para Lá da Música (2009), sobre a adolescência de John Lennon em Liverpool e a relação com a sua tia Mimi, bem como de telediscos de Elton John ou dos R.E.M., mas também do inenarrável As Cinquenta Sombras de Grey.

[Veja o “trailer” de “Back to Black”:]

Muitos fãs de Amy Winehouse, incluindo jornalistas, têm andado a gritar “Ó da guarda!” nas redes sociais e nos media desde que se soube que Back to Black ia ser feito, por considerarem que era ainda muito cedo para aparecer um filme biográfico sobre ela, acharem que o essencial tinha já sido dito no documentário de Kapadia e tudo o que viesse a seguir seria apenas redundante e menor, ou pensarem que um tal projeto ia ser guiado por uma intenção comercial, quando não mesmo sensacional, de exploração fria da memória e da tragédia pessoal de Winehouse. Uma jornalista de um diário de referência inglês falou mesmo de “ganância” como motivação para Back to Black, e as primeiras imagens da pouco conhecida Marisa Abela na pele de Amy Winehouse causaram até reações ultrajadas.

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[Veja Marisa Abela falar sobre o filme:]

O filme de Sam Taylor-Johnson (uma admiradora confessa de Amy Winehouse, que viu ao vivo em Londres quando ela estava ainda a lançar-se) dá razão àqueles que disseram que não ia trazer nada de particularmente novo em relação a Amy, de Asif Kapadia, embora Back to Black se distinga deste pelo menos num aspeto. O pai da cantora, Mitch Winehouse, que não sai nada bem do documentário de Kapadia (ele entrou, aliás, em conflito com o realizador por causa disso, tendo-o acusado de dar uma imagem “mentirosa” da sua relação com a filha), aqui interpretado por Eddie Marsan, é apresentado sob uma luz muito positiva.

Em quase tudo o resto, Back to Black segue a trajetória familiar à maioria das fitas deste género, na organização narrativa, na seleção factual e na compressão temporal (Winehouse vai de desconhecida que canta em pubsa estrela no espaço de um quarto de hora), passando pela estenografia visual, sobretudo nos momentos mais negros de adição à bebida e às drogas. A realizadora e o argumentista Matt Greenhalgh (Control, Para Lá da Música) estruturaram o filme em redor do romance nefasto entre Amy Winehouse e o seu marido, Blake Fielder-Civil (Jack O’Connell), apontado como o principal responsável pelo comportamento errático e gradualmente auto-destrutivo da cantora, quer pela sua presença ao lado dela, quer pela sua posterior ausência.

[Veja uma entrevista com a atriz e a realizadora Sam Taylor-Johnson:]

Apesar da presença constante dos fotógrafos e jornalistas que querem apanhar a cantora na mó de baixo e a fazem sentir-se ainda pior, e da grande vulnerabilidade e instabilidade emocional dela, o filme não consegue explicar de forma minimamente satisfatória como é que uma rapariga tão nova, tão desprendida da fama e dos seus privilégios, tão solidamente talentosa, apaixonada pela sua arte e tão consciente da sua herança musical, soçobra de forma tão rápida e trágica. Ao contrário de AmyBack to Black fica-se pelo tema da “paixão fatal” e nunca vai à procura dos problemas familiares e das exigências da indústria musical que a possam ter prejudicado (excetue-se a figura da avó de Winehouse, Cynthia, interpretada por Lesley Manville, uma ex-cantora de jazz, grande apoio, “ícone de estilo” responsável pelo seu penteado “retro”, e conselheira da neta, e cuja morte a deixa de rastos).   

[Veja uma sequência do filme:]

Quem sai bem mesmo de Back to Black é Marisa Abela, que arriscou não ser dobrada nas sequências musicais. Ela é uma Amy Winehouse certeiramente persuasiva, captando a sua gestualidade, o feitio volátil e os extremos emocionais, a impetuosidade à flor da pele, a enorme vulnerabilidade e o modo de estar e até de caminhar em certas ocasiões, e também a sua personalidade em palco e as peculiaridades de interpretação, quer entoe canções de Winehouse, quer standards. Sam Taylor-Johnson, no entanto, coibiu-se de mostrar a extrema degradação física da cantora nos últimos tempos da sua existência, e por isso Abela nunca aparece tão completamente devastada como ela esteve na realidade.

Longe de ser sensacionalista e de se deleitar, por detrás da máscara do “retrato realista”, no estereótipo da artista transformada em caco humano pela bebida e pela droga fixado e popularizado pelos tabloides, como muitos temiam ou profetizavam, Back to Black é, com as suas limitações narrativas, escolhas dramáticas, omissões biográficas e rotinas previsíveis do formato, um filme sóbrio e correto, obvia e sinceramente empático e sensível para com Amy Winehouse. Mas o Amy de Asif Kapadia vai continuar a ser o título de referência para os que se interessam pela cantora e pela história da sua complicada vida e da sua excecional ascensão e calamitosa queda.