Maria Luz passou mais de metade da sua longa vida em Angola e escolheu ficar quando muitos partiram. Diz que a Independência “podia ter sido uma coisa muito bonita”, mas faltou concretizar o sonho de uma Angola melhor.

É numa das zonas nobres de Luanda, junto ao cemitério do Alto das Cruzes, que continua a viver, na casa de família concluída em 1952 e para onde se mudou pouco depois da sua chegada à capital angolana, em setembro de 1951, depois do nascimento da primeira filha.

Nascida em Matosinhos em 1930, Luz cruzou-se com António, seu futuro marido, num baile de Carnaval. Passaram também a encontrar-se na missa, ocasião para trocas de olhares e conversas que rapidamente evoluíram para o namoro e daí para o noivado que deu em casamento no ano de 1951.

A morte do sogro obriga a mudar os planos do jovem casal. António tem de regressar a Angola para tomar conta dos negócios do pai, Mabílio de Albuquerque, fundador de uma casa comercial centenária, inaugurada em 1923, a única sobrevivente na Baixa de Luanda instalada num emblemático edifício coroado por quatro estátuas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Maria Luz segue-o. Embarcam no “Império”, paquete português que operava a carreira colonial, em 1951 e chegam a Luanda após uma viagem de doze dias, juntamente com um perdigueiro. Era o tempo em que “os passageiros vestiam a rigor” e que “eram bonitas as viagens de barco”. “Havia dias de semana em que senhoras iam de vestido comprido, os homens usavam smoking africano, era casaco branco, lacinho, calças pretas, havia primeira, segunda e terceira (classes), parava-se nos Açores, na Madeira e em São Tomé”, descreve Luz.

Recém-casada e grávida da primeira filha — que seria um dos primeiros bebés a nascer na Casa de Saúde de Luanda, atual maternidade Augusto Ngangula — Luz, trazia “aquela sensação” de vir para um mundo desconhecido, superando os receios com o amor. “Eu e o meu marido gostávamos muito um do outro”, afirma, com o rosto iluminado.

Do dia da chegada, recorda o calor intenso, apesar de ser época de cacimbo. De espírito aberto e boa conversadora, vai-se entrosando com a sociedade local, ocupando os dias nas compras, convívios “em casa de uns e de outros”, missas ao domingo e idas ao Mussulo, enquanto o marido dava preferências a pescarias e caçadas.

A vivenda da família, que usufruía de uma magnifica vista para a baía, hoje tapada por três edifícios abandonados, guarda em cada canto as vivências africanas dos seus proprietários. Na sala, troféus recordam as glórias passadas das caçadas de António, há telas de artistas angolanos, esculturas tradicionais, um painel em madeira do pintor Neves e Sousa, e as memórias da família preservadas em livros e fotografias.

Ocasionalmente, Luz acompanhava o marido nas caçadas e recorda o dia em que o jipe parou para ver “uma grande patada de elefante” na terra molhada. “O meu marido saiu do jipe, foi com o rapaz, levou a arma, nós ouvimos pum-pum. Passado um bocado veio o rapaz ter connosco e diz “o Sr. Albuquerque pediu às senhoras para virem ver”. E quando chegamos lá ele estava em cima do elefante”, contou à Lusa.

“Do nada” começam uma fazenda de gado no Cuanza Sul, na década de 60. “A minha primeira casa foi uma cubata e a cozinha uma tábua e dois tambores, uma cubata para os miúdos e assim começámos”, recorda.

Na fazenda, hoje mais conhecida como Fazenda Cuerama, no município da Quibala, onde a filha Olga desenvolveu um projeto social com escola, posto médico e oficinas pedagógicas de cerâmica, carpintaria e costura, sofreu-se o drama da guerra e um dos empregados morreu devido a uma mina. “Foi horrível”, lamentou.

Mas houve também episódios pitorescos, como o dia em que o líder da UNITA, Jonas Savimbi, “um grande homem, que falava muito bem, escrevia muito bem” chegou a propor “um vencimento fantástico” a António para que fosse seu piloto, oferta diplomaticamente recusada porque o marido “tinha a firma e não a podia abandonar”.

Quando começaram “as confusões” do 25 de abril, o marido entrega as armas de caça. “Graças a Deus” continuam sem problemas, mas Luz vai-se despedindo dos amigos. “Começaram a ir as mulheres e as crianças embora, os maridos ficaram e nós não sabíamos o que ia acontecer porque Salazar não queria que Angola fosse independente. Era um homem muito culto, intelectual, mas quanto ao ultramar, não”, critica, sublinhando que “o processo depois da independência podia ter sido uma coisa mais bonita”.

E não teve medo de ficar? “Não”, afirma perentória, com a firmeza de quem passou antes pelo conflito espanhol e por uma guerra na Europa. “Acho que o meu lugar era estar ao lado do meu marido, estou convencida que se o meu marido visse um grande perigo ou íamos ou dois ou mandava-me embora”, salientou, acrescentando que viveu o 25 de abril “com alegria porque era um passo para a independência“, a que todos aspiravam.

Mas a Independência não trouxe exatamente o que se esperava: “Nessa altura não se podia falar. Vinha um e nos dizíamos ‘muito bem, muito bem’, vinha outro com as suas ideias e nos dizíamos ‘muito bem, muito bem’ e foi assim que nesta sala conversávamos sempre, uns eram da UNITA outros eram das FAPLA. Mas o meu marido dizia: nós estamos aqui a conversar sobre o futuro de Angola, mas não somos nós que o vamos fazer, vamos contribuir”.

Os anos do pós-independência, em 11 de novembro de 1975, não foram fáceis, com senhas de racionamento, muitas lojas a fechar e colonos a partir deixando para trás bens e recordações. “Foi um bocado confuso nessa altura, diziam assim: o branco vai-se embora, ficas com a casa do branco, o carro do branco e não é preciso trabalhar mais. Mas não podia ser. Prometeram muitas coisas que não podia ser”, desabafa.

Quase 50 anos depois da independência diz, de sorriso aberto que é hoje mais angolana do que portuguesa. Mas lamenta que aquele sonho da “Angola melhor” não se tenha concretizado.

Do Dia da Independência recorda a caldeirada de cabrito que estava a preparar para os amigos, a preocupação do marido Antonio e a serenidade do cunhado Mabílio. “Nós estávamos preocupados porque ele nunca mais aparecia. E o meu marido foi ao apartamento dele e escreveu-lhe um papel: Mabílio estamos preocupados, não sabemos onde é que tu estás. Nisto ouve-se um barulho e lá vinha ele da praia ‘muito descontraído'”, recorda entre risos.

Raquel Rio (texto), Ampe Rogério (fotos)