O último episódio do “Justiça Cega” da Rádio Observador conseguiu algo raro na comunidade jurídica: a unanimidade.

“Nem é o fim da democracia, nem de um MP autónomo”

Convidados a debater as consequências do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a Operação Influencer, o desembargador Nuno Matos e os advogados Ricardo Sá Fernandes e Paulo Saragoça da Matta entendem que não existe fundamento para avançar com qualquer proposta de destituição da procuradora-geral Lucília Gago, aconselham prudência ao poder político nas críticas ao Ministério Público (MP) e asseguram que a manutenção da autonomia consagrada no Estatuto do MP é o que defende melhor o sistema democrático — em que os pesos e contra-pesos são essenciais.

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Mas, por isso mesmo, defendem alterações e afinações do modelo organizativo do MP e da própria forma como é escrutinado processualmente pelo juiz de instrução criminal.

“Recuso os dois extremos desta questão. Ou seja, nem estamos perante o fim da democracia, nem é apenas um caso em que o MP perdeu processualmente na Relação de Lisboa. Não. Este caso é um pouco mais grave do que isso, tendo em conta naturalmente o tipo de investigação que estava em causa, a forma como ela foi anunciada, as medidas de coação severíssimas que foram reclamadas e a posição que é muito raro acontecer neste género de recursos, em que a Relação de Lisboa foi além daquilo que seria expectável e foi mesmo ao ponto de dizer que não há aqui indícios de surpresa nenhuma”, afirma Ricardo Sá Fernandes.

“Algo está mal dentro da estrutura do Ministério Público”

Contudo, acrescenta Sá Fernandes, “há algo que está mal dentro do MP, alguma coisa não está a funcionar bem dentro da sua estrutura institucional. Temos de ter consciência disso, como o próprio MP,  mas não caio na posição extrema, contrária, de que o MP é uma instituição desgraçada, que está posto em causa”.

Paulo Saragoça da Matta recorda, por seu lado, que a procuradora-geral da República só pode ser exonerada da mesma forma que é nomeada: “por promoção do Governo ao Presidente de República, que aceita ou não aceita”. Contudo, acrescenta, “não há razão nenhuma para a destituição da senhora procuradora-geral. Há que olhar para isto com a prudência devida. Mal andaríamos se tivéssemos o MP como instância que nunca pudesse perder um recurso”, afirma.

A “inaptidão” do Ministério Público, as referências a António Costa e a porta aberta pela Relação aos procuradores

O penalista aconselha, por outro lado, que se “deve refletir qual é o papel do MP, como deve ser encarado e que poderes deve ter”, sem, contudo, colocar o Estatuto do MP

Já o juiz desembargador Nuno Matos, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, garante que o “sistema de justiça não está prestes a implodir, nem nada desse género. São necessárias reformas? São. Temos que falar sobre isso? Temos que fazer escrutínio? Temos. São necessárias pequenas alterações. Mas, calma, calma”, enfatiza.

O desembargador, que está colocado na Relação de Lisboa, alerta que o acórdão da Relação de Lisboa analisou apenas a “prova carreada para os autos até o dia 7 de novembro de 2023. Quer a decisão do juiz de instrução criminal, quer o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, estão reportados a indiciações que existiam à data de 7 de novembro. A investigação provavelmente continua depois dessa data mas nós não sabemos o que é que aconteceu”.

Ou seja, os desembargadores não se pronunciaram sobre a prova que resultou das próprias buscas judiciais, como por exemplos os 75.800 euros.

Que soluções e melhorias para o sistema atual?

Pode-se dizer que a unanimidade deixa de existir quando se começa a falar de possíveis soluções para melhorar o escrutínio do MP mas também da eficácia do próprio sistema judicial.

“É preciso, por vezes, fazer pequenas alterações para pôr o sistema a funcionar”, acrescenta Nuno Matos, que defende um eventual reforço dos poderes do juiz de instrução criminal durante a fase de inquérito.

“Costa deve ser ouvido com a diligência possível”

Uma coisa é certa: ao contrário do que foi defendido por Augusto Santos Silva, o desembargador Nuno Matos não considera que exista um preconceito dos tribunais sobre os políticos. “É um sinal de vitalidade da própria democracia e do sistema de justiça, a justiça fazer o seu trabalho, não olhando a quem tem pela frente, essa é que é a questão e é assim que deve ser. O MP também tem um papel muito importante”.

Ricardo Sá Fernandes, por seu lado, defende duas alterações que não implicam uma mudança estrutural na forma como o MP exerce a sua ação penal:

  • “Há um problema cultural de falta de esclarecimento público. O MP deve ser incentivado a esclarecer as posições que adota”, em nome da “transparência” e de uma política de comunicação “discreta mas feita com razoabilidade e equilíbrio”.
  • Deve ser ponderada uma “alteração do papel do juiz de instrução criminal na fase de inquérito”. Porquê? Porque o juiz de instrução tem “uma competência muito restrita em matéria relacionada com escutas, medidas de coação” e deve passar a ter um papel mais ativo e com poderes mais alargados “quando existem questões de direitos fundamentais”, como a duração dos inquéritos criminais que “pode durar dois, cinco, dez ou quinze anos até à prescrição”, defende Sá Fernandes.

Saragoça da Matta concorda e acrescenta outro tema: a reposição do poder hierárquico no MP.

“Não podemos dizer ‘ai, que maravilha que é o Estatuto de Autonomia do Ministério Público’, mas ao mesmo tempo não queremos poder hierárquico. É incongruente um procurador da República vir dizer: ‘eu tenho que manter a minha autonomia consagrada pela Constituição de 76, mas isso cá da hierarquia é que não.’ A lei impõe essa hierarquia e ela tem que existir. Sou defensor de um Ministério Público forte, unido, competente, capaz. Mas também sou um defensor de lei e ordem”, acrescenta.

“Temos e devemos ser exigentes no controle do Ministério Público por parte dos tribunais, mas temos que ter consciência que o combate à corrupção, ao tráfico de influência e a outros crimes que lhes estão associados é um imperativo nacional. Mal iríamos nós se, à conta do processo Influencer e da desgraça que isto foi, abrandássemos nas medidas que temos que adotar relativamente ao combate a essas chagas morais da sociedade portuguesa“, conclui Ricardo Sá Fernandes.

O advogado dá mesmo o exemplo dos famosos 75.800 euros descobertos no gabinete de Vitor Escária na residência oficial do primeiro-ministro. “Essa matéria dos 75 mil euros deve ser investigada. Espero que seja, como tudo o mais também deve ser investigado, porque é preciso levar a investigação até ao fim“, afirma.