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O viciante desconforto de "Baby Reindeer"

Este artigo tem mais de 6 meses

Número 1 da Netflix nas últimas semanas, é um dos fenómenos televisivos do ano. Uma história real de "stalking" feita minissérie entre o thriller e o humor, com personagens recortadas na perfeição.

A história é a de Donny (Richard Gadd), Martha (Jessica Gunning), esta persegue o primeiro, numa narrativa feita de reviravoltas
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A história é a de Donny (Richard Gadd), Martha (Jessica Gunning), esta persegue o primeiro, numa narrativa feita de reviravoltas

A história é a de Donny (Richard Gadd), Martha (Jessica Gunning), esta persegue o primeiro, numa narrativa feita de reviravoltas

Qualquer que seja a relação que se crie com Baby Reindeer, goste-se ou não, a sensação de ver esta minissérie é coisa bruta. Se abriu a Netflix nas últimas semanas, com certeza que já reparou em Baby Reindeer nos lugares cimeiros do top, é provável que já tenha visto, muito provável que alguém já lhe tenha falado da série. Um daqueles fenómenos que acontecem de vez em quando, pouco esperados ou não, mas acontecem.

Baby Reindeer foi primeiro um espectáculo do humorista e performer Richard Gadd (escocês de 34 anos), um de vários que criou na década passada e que, aos poucos, lhe foram dando alguma credibilidade, seja no Edinburgh Festival Fringe ou em pequenas salas londrinas. Foi no Fringe que apresentou Baby Reindeer pela primeira vez, onde ganhou prémios e um balão de oxigénio para palcos e prémios maiores. Até que aconteceu a pandemia.

Parou o espectáculo, mas não parou o caminho até chegar à Netflix, numa minissérie de sete episódios — quase todos de trinta minutos — sobre a experiência de Richard Gadd ser assediado por uma mulher mais velha. Baby Reindeer, espectáculo e série, são baseados na história verídica do autor e esse é o primeiro elemento para o lado bruto da produção. Não tem só a ver com a primeira pessoa, mas pela forma como Gadd se vê no passado, como conta a própria história e como percebemos que tudo — tudo mesmo — faz parte de um processo. E neste “tudo” está também o “onde” chegou, “como” chegou e como isso se reflete na série de televisão.

[o trailer de “Baby Reindeer”:]

Richard Gadd é um narrador superlativo. Não vamos dizer que é ótimo a fazer de si próprio, mas é um ótimo performer, estudou, aprendeu a comunicar com o corpo e a expressar-se fisicamente. Nos últimos episódios há momentos em que não se percebe se o riso que lhe está a sair da cara são de regozijo, de gozo, de troça ou de desconforto. Também podem ser tudo isso e, qualquer que seja a leitura, serve a cena, a narrativa maior, ou seja, a forma como se vê o autor neste processo todo.

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Ser um narrador de enormes qualidades possibilita que o espectador esteja vidrado na história de Donny Dunn (Gadd), que a comunicação nunca se perca, que até flua quando os e-mails de Martha Scott (a assediadora, interpretada por Jessica Gunning) surgem no ecrã. E a forma visual como estas mensagens aparecem escritas, como fazem parte da narrativa, criam uma cadência impressionante na experiência visual.

Acresce que Gadd faz um trabalho incrível em levar-nos a acreditar que a história é uma coisa durante os três primeiros episódios, para depois se perceber no quarto que é isso e outra coisa e, nos dois finais, que é isso, outra coisa e algo mais ainda. Para lá da experiência pessoal horrível de Gadd, este conta a história de forma cativante e faz-nos ficar não por razões de empatia ou prazer pelo horror, mas porque faz-nos questionar o nosso próprio lugar, a nossa experiência, o que somos, como agimos, mesmo quando a nossa experiência é infinitamente diferente à dele.

Martha começa a ir ao pub diariamente, fala de tudo e mais alguma coisa, o contraste entre as histórias e a pessoa que tem à frente intrigam Dunn. Pela curiosidade e por, de certa forma, ela lhe dar uma certa atenção, ele nunca é hostil com Martha

Pode-se dizer que Gadd se despe à frente do espectador. Bom, pode-se acreditar nisso, se se quiser ver Baby Reindeer como uma redenção ou uma catarse, só que Baby Reindeer não é isso. E é, também por isso, que é algo bruto. É um trabalho de ficção — inspirado na vida de Gadd — que funciona como um trabalho de ficção. E manipula-nos de forma incrível. O que se passa então?

Conhecemos Donny Dunn como um aspirante a comediante. Na vida real — ou seja, durante o dia — trabalha num pub. É aí que conhece Martha, uma mulher (muito) gorda que entra um dia no pub e lhe conta uma fascinante história de vida (diz que é advogada, quem conhece, etc.). Mas no final diz que não tem dinheiro para pagar um chá. Dunn oferece-lhe o tal chá. E a partir daí Martha começa a ir ao pub diariamente, fala de tudo e mais alguma coisa, o contraste entre as histórias e a pessoa que tem à frente intrigam Dunn. Pela curiosidade e por, de certa forma, ela lhe dar uma certa atenção, ele nunca é hostil com Martha.

A coisa escala rapidamente, ela começa a enviar-lhe emails, dezenas deles diariamente. Martha vê coisas naquela conversa que ele não vê, ele tem várias possibilidades de colocar um travão na situação, mas nunca o faz. Aliás, quando age de alguma forma, age no sentido contrário, dando mais lenha para o fogo de Martha arder. Ao mesmo tempo, Donny assume ainda uma outra personalidade com Teri (Nava Mau), com quem vai iniciando, mas nunca completamente, uma relação “séria”.

Donny está numa quase relação com Teri (Nava Mau), que ao mesmo tempo de serve de espelho, de auto-análise e barómetro moral do protagonista

Os primeiros três episódios são exemplares, a situação escala de forma orgânica, credível. Martha é de facto um monstro e não se percebe porque é que Donny, sabendo disso, não mete um travão. O quarto episódio, de flashback, é o episódio do meio, o episódio choque, que tem um ótimo papel em responder a perguntas, colocar mais questões e, sobretudo, de reverter a nossa posição sobre Donny. Paralelamente com o sucesso dos episódios, têm acontecido polémicas na vida real, como acusações da suposta “stalker” verdadeira na imprensa britânica. Contribuem para o fenómeno pop, naturalmente, sabe ao espectador decidir que importância lhes atribuir.

Se até aí, incluindo nesse episódio, há uma sensação constante de que ele é uma vítima, na segunda metade de Baby Reindeer esse estatuto muda. É o grande golpe. Os mais puristas ou sensíveis dirão que se está a ignorar o trauma do protagonista, do autor. Mas há que ver para lá disso, há que pensar em Baby Reindeer como um trabalho de ficção, em que em nenhum momento o criador/narrador/protagonista dá descanso ao espectador sobre o que este deve estar a sentir ou em que direção deve seguir. Nos primeiros 3/4 episódios, somos intencionalmente manipulados, nos últimos três somos deixados à deriva para ver quem queremos ver.

É o grande golpe de Baby Reindeer, como se disse ali atrás, e é também por isso que é bruto. É possível que se chegue ao final e que se goste muito menos do que se gostava no início (não tem a ver com a história, mas com o julgamento que atribuímos ao protagonista ou à experiência do espectador) ou do quanto se achava que se ia gostar. Faz parte, a cena final pede exatamente isso. Caia bem, ou mal, o sentimento fica lá. É bruto, seja pelo ritmo constante de Gadd ou pela vida que Jessica Gunning dá ao seu monstro. E no fim, Baby Reindeer é de facto um fenómeno televisivo incontornável de 2024.

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