Depois de, há dois anos, o governo espanhol ter introduzido uma lei de memória democrática destinada a permitir mais “justiça, reparação e dignidade” às vítimas da guerra civil e da ditadura espanhola, especialistas da ONU vieram agora a público alertar que as resoluções propostas por governos de coligação regional de direita e extrema-direita, com o objetivo de combater a medida do Executivo socialista, podem violar as normais internacionais de direitos humanos.
Segundo o The Guardian, a lei adotada pelos socialistas contém dezenas de medidas destinadas a ajudar a “resolver a dívida da democracia espanhola para com o seu passado”. Entre as medidas propostas estão a necessidade de elaborar um censo e a criação de um banco nacional de ADN para ajudar a localizar e identificar os restos mortais de dezenas de milhares de pessoas. A lei pretendia ainda proibir grupos de glorificarem o regime de Franco e “redefinir” o Vale dos Caídos, a gigante basílica e memorial onde Franco permaneceu durante 44 anos até ser exumado, em 2019.
Políticas da memória e memórias da política em Espanha: usos e manipulações recentes
O problema reside, então, nas chamadas “leis da concórdia” que o PP e o Vox procuram aplicar nas regiões que governam coligados: Aragão, Castela e Leão e Valência.
Em Castela e Leão, avança o jornal inglês, a lei apresentada não utiliza a palavra “ditadura” quando se refere à era de Franco e não condena as violações dos direitos humanos cometidas entre o início da guerra civil e o regresso da democracia, alertam os especialistas, que acrescentam que a lei “tornaria invisíveis as graves violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Franco”.
Já em Valência, a lei proposta pelo Vox estaria a desconsiderar centenas de milhares de vítimas da guerra civil e do franquismo, com os especialistas a referirem-se a “todas as vítimas da violência social, política e terrorista e da perseguição ideológica e religiosa”. Por fim, os peritos consideraram que Espanha tem uma missão para com as vítimas de desaparecimentos forçados.
Em carta enviada ao governo de Espanha no final de abril, três especialistas da ONU disseram que a informação que tinham recebido sobre as leis propostas “poderiam afetar as obrigações do Estado espanhol quando se trata de direitos humanos, especialmente a sua obrigação de garantir a preservação de memória histórica sobre graves violações dos direitos humanos”.
A carta foi assinada por Fabián Salvioli, relator especial para a promoção de verdade, justiça e reparação, Aua Baldé, presidente do grupo de trabalho sobre desaparecimentos forçados ou involuntários, e Morris Tidball-Binz, relator especial sobre desaparecimentos extrajudiciais, sumários ou execuções arbitrárias.
“Instamos o governo espanhol a tomar todas as medidas necessárias para garantir o estrito respeito pelas normas internacionais que regem a preservação da memória histórica sobre graves violações dos direitos humanos”, acrescenta a carta.
Para os especialistas, a “lei da concórdia” pode acabar com projetos públicos de memória histórica e encobrir as graves violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Franco, porque não faz qualquer menção ou crítica explícita à natureza ditatorial do regime. Segundo a carta, a lei pode “suprimir muitas associações e atividades de memória histórica.