A autora de Essa dama bate bué! e Memórias, aparições e arritmias revisitou as suas raízes e apresentou um retrato de uma Angola pós-colonial e do pós-guerra, em que a memória tem um papel fundamental, durante uma sessão de conversas na Feira do Livro de Buenos Aires, onde Lisboa é a cidade convidada de honra.
Partindo do seu romance Essa dama bate bué!, Yara Monteiro falou da escravatura sofrida pelos seus antepassados, falou da independência, da diáspora, da mestiçagem e da forma como tudo isso continua a marcar a sua vida — e de todos os outros que tiveram experiências semelhantes — hoje.
“Há uma grande comunidade da diáspora de Angola que cresceu no silêncio. Eu cresci no silêncio, não se falava da guerra, cresci com a ideia de uma Angola mística, paradisíaca, mas a minha geração está a destruir muitos mitos: o mito de que não há racismo em Portugal, o mito do bom colonizador, o mito da igualdade”, afirmou.
Esse silêncio começou a tornar-se ruidoso quando Yara Monteiro, bastante mais nova, foi ao arquivo do avô e conversou com a avó: “Foi quando descobri verdades dolorosas do passado”.
“Mas é um processo de catarse importante para avançar na vida. É importante a revisitação de histórias familiares, histórias da memória”, defendeu a autora, que usou o material histórico da sua família como inspiração para o romance.
Yara Monteiro lembrou como a guerra civil em Angola pôs irmãos a lutar contra irmãos, vizinhos a matar vizinhos, uma guerra ideológica, baseada na cor, que opunha negros, brancos e mestiços, e que “foi muito violenta”.
“É uma história que precisa de ser revisitada porque o luto precisa de ser feito para avançarmos de mãos dadas. Angola tem muitas tensões relacionadas com a cor, em Portugal há a ideia de que fomos bons colonizadores”, afirmou a escritora, defendendo a necessidade de falar sobre esses aspetos e desmontar esses mitos.
Monteiro admite que é complicado, porque é um assunto que “mexe na identidade nacional de um país e gera uma posição defensiva”.
“Temos de partir de uma posição bem-intencionada: vamos fazer um processo de cura. Se não falamos é como ter um elefante na sala”.
Virando-se então para os argentinos, sugeriu-lhes que lessem o seu livro porque o país “tem também uma comunidade afrodescendente”.
“Há o mito de não haver negros na Argentina, mas a Argentina tem também uma cultura de escravos e deve olhar para a sua História e comparar com a de Portugal e perguntar ‘o que fizemos com a História afrodescendente do nosso país e da nossa cidade?'”, defendeu.
Yara Monteiro esclareceu que o seu livro não é panfletário e que a sua única intenção foi a de contar a sua história, através da história da protagonista — Vitória — que é a história de toda a sua geração, que foi “obrigada a abandonar o seu país e a vir para Portugal”.
O livro só se torna ativista porque fala dos silêncios da sociedade, do racismo e da inclusão, afirmou.
“Sinto-me refém, porque o conceito social de identidade é uma prisão, um estereótipo. Sou constantemente questionada sobre se sou portuguesa ou angolana, se sou branca ou negra, mas a identidade é como um barco que deita âncora. Eu deitei a minha âncora em Angola e eu deitei a minha âncora em Portugal”, disse.
Yara Monteiro recusa a ideia de identidade como “uma caixa”, porque essa conceção deixa de fora muita coisa, e usa com um exemplo o seu cabelo crespo, que por vezes alisa, o que leva a que outros lhe perguntem se o faz para parecer branca.
“Quando perguntam ‘de onde és?’ eu respondo ‘eu sou de onde estou’. Vivo no campo, no Alentejo. Sinto-me também alentejana. Se queremos ser independentes, não podemos ser reféns de uma identidade”, contou.
“A problemática das minorias é universal. Por que a arte e a literatura falam disso? Porque é o que nos inquieta, nos perturba e que é preciso processar. Eu processo através da escrita”, acrescentou a escritora.
Yara Monteiro nasceu em Angola e mudou-se para Portugal com 2 anos, por isso não tem memória da guerra, mas afirma que é uma memória que lhe pertence, que foi herdada, porque a sua família a viveu.
“Vou dar um exemplo: na minha família nada vai para o lixo, porque podemos necessitar. Isto é resultado da escassez que vivemos na guerra. Eu faço o mesmo porque herdei a escassez da vida da minha família. Isto é traumatizante”, confessou.