A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa reconheceu já nas suas contas perdas de 52,790 milhões de euros com as operações internacionais desenvolvidas entre 2020 e 2023. Este número consta do relatório e contas do ano passado que foi dado como concluído a 30 abril, um dia depois da provedora e da mesa terem sido exoneradas pela ministra do Trabalho de Segurança Social, Rosário Ramalho.
O documento, a que o Observador teve acesso, reconhece que “poderão existir responsabilidades que não se encontram previstas no valor que se encontra reconhecido”. Ou seja, as perdas na frente internacional podem ser maiores, sendo que uma parte destes valores foi considerada nas contas de 2021 e 2022, que foram corrigidas no início deste ano para refletir esta situação, entre outras. E revela que, no ano passado, ainda houve investimentos de seis milhões de euros na Santa Casa Global, antes da ordem para fechar a torneira dada pela provedora Ana Jorge.
A maior fatura das perdas resulta da decisão de dar como perdidas as transferências de capital realizadas na Santa Casa Global, empresa criada em 2020 para desenvolver a expansão fora de Portugal. Em causa está o capital inicial de cinco milhões de euros realizado no arranque deste processo — e o único que terá sido autorizado de forma expressa pela ex-ministra da Segurança Social, segundo afirmou Ana Mendes Godinho — e um montante de 24 milhões de euros de prestações suplementares prestadas pela casa mãe.
Além desta perda, a Santa Casa optou por registar as responsabilidades garantidas junto do Banco Santander Brasil no valor de 12 milhões de euros, e que dizem respeito a empréstimos contraídos pelas participadas da Santa Casa Global (SCG) no Brasil. Há ainda uma parcela de 11,6 milhões de euros de responsabilidades contingentes não identificadas e que poderão estar relacionadas com riscos jurídicos e contratuais dessas participadas que poderão vir a cair na conta da Santa Casa.
Estes valores são o resultado das conclusões da auditoria forense realizada às operações internacionais no ano passado e cujo relatório final só foi entregue na semana passada à Santa Casa. No relatório e contas consultado pelo Observador, e que ainda não inclui a certificação legal de contas nem o parecer do conselho de auditoria, a gestão de Ana Jorge justifica a demora nos trabalhos desta auditoria com as “enormes dificuldades que a SCG tem vindo a enfrentar na obtenção de documentação requerida pela BDO em meados de março relativa às participadas da Santa Casa Global”.
Dado o enorme volume de informação e documentos que foi necessário recolher junto das “empresas não controladas em geografias distintas — São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, e Reino Unido, Peru, Canadá e Moçambique — a possibilidade de se tratar de informações muito importantes e relevantes para a auditoria e por a SCG ainda estar a desenvolver esforços para a sua obtenção, a SCML considerou que o alargamento do prazo era essencial para reforçar e informar as conclusões desta auditoria forense.”
Segundo o relatório, a Santa Casa fechou o ano de 2023 com lucros de 2,451 milhões de euros, contra um prejuízo de 12,4 milhões de euros em 2022, resultado corrigido já no início deste ano, o que representa uma melhoria de dez milhões de euros. O saldo global foi de 14 milhões de euros que resulta de um saldo corrente positivo de 30,9 milhões de euros e um saldo de capital negativo de 16,4 milhões de euros. Em 2022, o saldo global tinha sido negativo de 37 milhões de euros.
Os rendimentos dos jogos sociais recuaram 4 milhões de euros para 191 milhões de euros, mas as receitas correntes da instituição cresceram 17% para 282 milhões de euros, uma evolução positiva para a qual foi determinante o pagamento excecional de uma comparticipação única de 34 milhões de euros por parte da Segurança Social, relativa a despesas assumidas pela Santa Casa com utentes em lares de terceira idade durante a pandemia — entre abril de 2020 e novembro de 2022.
A administração (provedora e mesa) da Santa Casa foi exonerada há uma semana, com a acusação de atuação negligente atribuída pelo Governo à inexistência de um plano de reestruturação financeira face às dificuldades nas contas que (começaram com a gestão anterior) à não prestação de informação à tutela, nomeadamente o relatório e contas aqui referido e que foi concluído um dia após a exoneração. O Governo ainda não nomeou substitutos.
Ana Jorge tinha um plano de reestruturação para a Santa Casa ou eram apenas “medidas avulsas”?
Esta semana são ouvidos no Parlamento alguns dos antigos responsáveis pela gestão internacional e da própria Santa Casa, nomeadamente Edmundo Martinho que foi provedor até há pouco mais de um ano, tendo sido substituído por Ana Jorge.