O voto de condenação que o Chega queria apresentar no Parlamento contra Marcelo Rebelo de Sousa não chegou a passar disso mesmo: uma intenção. Na Comissão de Assuntos Constitucionais, todos os outros partidos atacaram o projeto de voto contra as palavras do Presidente da República sobre as reparações históricas às ex-colónias com palavras duras, acusando o Chega de querer “censurar” Marcelo ou de desrespeitar a separação de poderes. No final, a decisão foi quase unânime: só mesmo o Chega quis aprovar a sua proposta, que morreu, assim, na praia. 

Coube ao deputado do Chega Rodrigo Taxa defender o projeto, defendendo que as palavras do Presidente da República não são “imparciais” e que são mais “graves” por serem ditas por uma figura que representa “todos” os portugueses. “Deve zelar pelos interesses de Portugal antes de qualquer interesse de qualquer outra nação”, argumentou o deputado. E, sobre o passado histórico de Portugal como país colonizador, garantiu que o partido nunca negou que durante a História de Portugal possam ter sido cometidos atos que “não estão de acordo com o tempo em que vivemos”, mas sublinhou que não é correto fazer avaliações sobre o que se passou, nalguns casos, há centenas de anos “com a mundividência” de hoje.

“Portugal não foi um mero país ocupante, foi um construtor de nações. Sim, trouxe contributos destas nações, mas também deixou muitos contributos infraestruturais, sociais e humanos”, argumentou, dizendo que as palavras de Marcelo “desvirtuam” esse legado. Além disso, o Chega afirma que Marcelo nunca se preocupou em falar dos cerca de 600 mil portugueses que “abandonaram os territórios ultramarinos com uma mão à frente e outra atrás”, deixando para trás “os seus pertences e felicidade”. E também acusa o Presidente e outros partidos de não terem “uma palavra” sobre antigos combatentes: “Foram cumprir o chamamento da pátria, merecem respeito”.

Ora estas palavras, a juntar ao projeto do partido, que acusa Marcelo em nome da Assembleia da República de “trair Portugal”, e à ação criminal que André Ventura promete apresentar contra o Presidente, levaram a críticas acesas de todos os outros partidos.

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Isabel Moreira, do PS, argumentou que se o projeto assumisse já a forma de um voto formal, e portanto tivesse passado pelo gabinete do Presidente da Assembleia da República, nem sequer poderia ter sido admitido, e que tendo em conta a separação de poderes a AR não poderia condenar a Presidência enquanto órgão. “O Chega finge que não sabe isto, porque está a fazer uma jogatana política e um número mediático” que é “embaraçante para a democracia”, disparou, acrescentando ver ironia no facto de o Chega, que costuma queixar-se dos “cancelamentos” e de que “já não se pode dizer nada”, queira agora criminalizar (com a ação que quer interpor contra Marcelo) declarações do Presidente.

Pedro Neves de Sousa, do PSD, classificou o voto como uma “continuação de uma cavalgada política” do Chega contra Marcelo. “Só por má fé ou total ignorância é que isto pode acontecer”. E aproveitou para criticar os juristas que deram pareceres sobre o assunto, mas pediram anonimato. “Típico de uma realidade paralela e não dignifica a Assembleia da República. Se a ideia é criar uma crise institucional, não contarão com o PSD”, disparou.

Nas outras bancadas, idem: Patrícia Gilvaz, da IL, recordou que o partido “repudiou veementemente” as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, mas que ainda assim o Presidente é “livre” de as expressar — o julgamento político é “legítimo”, mas não o institucional, por via da Assembleia da República, avisou. Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, defendeu que se pode fazer uma discussão sobre o passado do país e as “definições de patriotismo”, mas “não parecem razoáveis” tentativas de “censura ou delitos de opinião”. “Uma coisa é discutir essas palavras, outra é querer calá-las, censurá-las e criminalizá-las por delito de opinião”.

Já António Filipe, do PCP, ironizou dizendo que o Chega acredita que este voto não lhe dava horas de mediatismo suficiente e por isso ainda decidiu apresentar também um processo por traição à pátria. E manteve a ironia: se trouxesse ao parlamento todas as frases de Marcelo de que o PCP discorda “trazia aqui um verdadeiro anuário. Mas não estamos aqui para brincar com o dinheiro do povo, não estamos aqui para gozar com quem trabalha”. E pelo Livre, Paulo Muacho também concordou que este é apenas um “número mediático” do Chega, criticando o partido por usar a expressão “províncias ultramarinas”, como o Estado Novo fazia, em vez de colónias. E disse que o debate sobre reparações históricas é sério e não passa necessariamente por “entregar um saco de ouro de volta aos países”. O PAN concordou que a iniciativa “deturpa” o que está previsto na lei e que o julgamento sobre as palavras de Marcelo deve ser político.

Contas feitas, nada feito: só o Chega votou favoravelmente o projeto de voto, que ficou pelo caminho.