A primeira impressão é, sem dúvida, das melhores: livro imponente, no formato e na lombada, preparado por um coletivo de figuras de créditos firmados no assunto — e todos sabemos que editores, livreiros e académicos a trabalhar juntos é coisa muito boa mas bastante rara —, sobretudo a certeza de que faltava fazer um inventário deste tipo, num momento em que tanto se fala de foto-livros ou livros de fotografia. Depois, o prefácio assinado por um historiador espanhol deste género de publicações, ele próprio autor de estudos pioneiros nesta área, proporciona um olhar de fora para o panorama português, que se junta à dezena e meia de outros que comentam os objetos escolhidos entre mais de 600 identificados no quadro dum projeto de investigação a várias mãos que se prolongou por quatro anos. Finalmente, uma abordagem por proximidade temática dir-se-ia a mais produtiva para tentar dar sentido aos 88 livros de fotografia aqui analisados, “em contextualização histórica, política, artística e social” (p. 19), e dados a ver em algumas páginas digitalizadas. Ainda mais: Livros de Fotografia em Portugal: da Revolução ao Presente vem alinhar-se com outras publicações congéneres surgidas em anos muito recentes da Europa à Ásia, permitindo que doravante a arte portuguesa dos foto-livros possa ser avaliada internacionalmente. Aliás, Horacio Fernández vai ao ponto de dizer que este livro “em breve terá o seu próprio lugar nas histórias internacionais da fotografia” (p. 15).

Não há que duvidar disso, desde logo pelo impulso da rede de contactos internacionais que o comércio livreiro, os intercâmbios universitários e as feiras ou exposições da especialidade aquém e além-fronteiras facilmente lhe podem e vão proporcionar, num meio em franca aceleração e expansão. Mas se assim é, ou será, difíceis de esconder são duas falhas graves que esta edição, na aparência tão cuidada, rapidamente deixa saltar à vista: falta o elenco-índice dos livros escolhidos e seus fotógrafos; sobretudo, falta a lista de todos os foto-livros identificados na pesquisa, de que apenas uma sétima parte foi destilada. Um índice onomástico final teria sido um útil instrumento de estudo que, uma vez mais, ninguém se dispôs a fazer. A partilha desse inventário completo potenciaria novas abordagens dos foto-livros portugueses, ou de fotógrafos estrangeiros sobre Portugal, mas sobretudo — diria, em contrapartida ou contraciclo — deixaria ainda mais exposto o critério de seleção adotado, do qual se poderá dizer que incorporações duvidosas tomaram o lugar de omissões injustificáveis, para não dizer que são escandalosas.

Excluir desta representação alguns foto-livros carismáticos que serviram como catálogos de exposições (mas há outros, todavia), ou deixar de fora dela fotógrafos sem motivo aparente ou, pior ainda, por eventuais quezílias pessoais (como parece ser o caso de José Afonso Furtado), reduz drasticamente a objetividade da escolha, para mais feita num petit comité que foi capaz de ousar outras heterodoxias quanto à estrita condição de foto-livro (postais recortados por Lourdes Castro, arte performativa de Helena Almeida com recurso à fotografia…), porém cego à ponderação das distorções que a sua escolha — e escolha absolutamente livre, bem entendido — aqui e ali acabaria por fazer. A lucidez dá trabalho, exige pensar, repensar uma e outra e outra vez ainda. Não quiseram que fosse assim.


Título: “Livros de Fotografia em Portugal: da Revolução ao Presente”
Organização: David-Alexandre Guéniot, Filipa Valadares, José Luís Neves, Susana Lourenço Marques

Prefácio: Horacio Fernández
Editores: Ghost Éditions, Pierrot le Fou e STET: Livros & fotografias

Design: Pedro Nora
Páginas: 484

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Como compreender a omissão de Um Dia Cinzento de Jorge Molder (1983), Insignificâncias de Gérard Castello Lopes (1986) — e precisamente, a publicação e não o cartaz que dá capa ao livro! —, Guerreiros do Mar de João Mariano (1998), Mértola por de Luís Pavão, Mariano Piçarra e outros (1997), Chorar por Água de José Manuel Rodrigues (1999), Crónicas Portuguesas de Georges Dussaud (2007), Portulíndia de Nuno Félix da Costa (2009) ou, já mais perto dos dias de hoje, Sena da Silva: Uma Antologia Fotográfica (2013), Os Últimos Heróis de Pepe Brix (2015) e os oito Carnets d’imagens póstumos de Ângelo de Sousa (2017)? São só alguns exemplos. Mais ainda: o facto de terem parado em 2015 excluiu liminarmente obras que se têm destacado nos últimos anos, como — também ao acaso da memória instantânea — a do geógrafo de “paisagens transgénicas” Álvaro Domingues (A Rua da Estrada é de 2009…), o Atlas de Suzanne Daveau (2021), Unidade 1967-2010 de Armindo Cardoso (2021) e ainda Contaminações. Minas abandonadas: Fotografias 1994-2009 de José Afonso Furtado (2021) ou os sucessivos álbuns de Artur Pastor, cuja presença no capítulo “Território” se diria incontornável, aliás como Not Yet de Pedro Lobo (2020)? Manoel de Oliveira fotógrafo (2021), e a sua redescoberta impactante, não merecia ser considerado?! E o Jorge Guerra, da colecção Ph. (2021)? E o Condor argentino e o 46750 carioca de João Pina (2014 e 2018), nunca existiram? É inevitável que cada leitor atento se recorde destas ou de outras ausências, no inescapável processo interativo que é sempre a leitura duma antologia ou história crítica.

Por outro lado, num projeto editorial deste âmbito e orçamento, uma atualização tão de última hora quanto possível seria um objetivo a alcançar, quaisquer que tenham sido as contrariedades na fase final da edição (e há quase sempre), pois o ano 2015, dado como um “hoje” em que ninguém já se reconhece, não tem como ser um marco histórico correspondente ao da Revolução de 1974. Nada impediria que a campanha fosse estendida a finais de 2023 ou inícios de 2024, isto é, oito ou nove anos depois — e caramba, é mesmo muito tempo! — do derradeiro registo deste inventário. Os editores deste Livros de Fotografia em Portugal preferiram, assim mesmo, dar todo o flanco às críticas e perplexidades de quem correria a elogiar-lhes o empreendimento e o resultado. É quase caricato.

Dito isto, o monumental livro traz memória histórica relevante, boa parte da qual constituída por trabalhos de circulação restrita ou de fotógrafos estrangeiros sobre o país, em edições feitas longe daqui e, por isso, de limitado conhecimento e acesso entre nós. Há desde logo, do período revolucionário, os álbuns do alemão Günter Karau (1976, 160 pp.) e do italiano Fausto Giaccone (1987, 88 pp., onde curiosamente há um texto de Antonio Tabucchi), mas é no capítulo intitulado “Mito e aparência” que nos surgem as maiores surpresas: Neal Slavin (Portugal, Nova Iorque, 1971, 96 pp.; com um texto saído numa New Yorker de 1955); Édouard Boubat (Anges, Paris, março de 1974, 44 pp.); Tad Wakamatsu (Ipy Girl Ipy, Tóquio, 1970, 138 pp.); e Krass Clement (Af en Bys Breve. Fotografier fra Lissabon, Copenhague, 1993, 167 pp.). Boubat veio várias vezes a Portugal desde 1956 e fez este livro de pequeno formato a partir das procissões minhotas do 15 de agosto mariano, combinando referências eruditas (do Renascimento italiano à britânica Julia Margaret Cameron, 1815-79) com o universo popular português, em vinhetas imagéticas «em que o divino e o carnavalesco, maravilhosamente, se fundem” (Martins, p. 329). Pelo seu lado, o foto-livro de Wakamatsu — um assistente de Richard Avedon, em Nova Iorque — mistura “na sua narrativa o imaginário da emancipação sexual e da cultura hippie norte-americana com a figuração do fado e da tragédia portuguesa, na pitoresca vila piscatória da Nazaré” (Marques, p. 341), com a atriz, modelo e cantora Haruko Wanibucchi — então com 25 anos apenas, diga-se de passagem — a encarnar a clássica figura da varina de lutuosa capa negra (v. foto pp. 344-45)…

“Território e ficção” é dos capítulos mais interessantes desta compilação, com os foto-livros Portobello (Patrícia Almeida, 2009, 104 pp.), sobre o Algarve, e Pearl (Tiago Casanova, 2014, 128 pp.), sobre a Madeira, ou aqueloutro, tão inesperado, de Valter Vinagre sobre abrigos de prostituição em bosques e florestas (Posto de Trabalho, 2015, 104 pp.). Mas também importa destacar aqui Portugal Connosco. O Olhar dos Carteiros (muitos autores, 2011, 212 pp.), quando os CTT distribuíram c. 5400 máquinas fotográficas descartáveis aos seus agentes de distribuição para que registassem o seu quotidiano durante um mês, daí resultando “um anti-postal de assimetrias e invisibilidades, feito também de improviso e proximidade” (Martins, p. 312). Noutra perspetiva, têm interesse peculiar Looking up in Osaka, projeto de João Penalva (2008, 88 pp.) de observação e registo dos postes e cabos de eletricidade na paisagem urbana japonesa, e Letras na Paisagem levado a cabo pelo gabinete de design R2, de Lizá Ramalho e Artur Rebelo (2013, 148 pp.). E claro, o disputado Grand Herbier d’Ombres de Lurdes Castro (2002, 220 pp.), que tanto ajudou a recolocar a modernidade da artista na sua volta ao país. Modernidade essa também aqui muito bem representada com o Ama-San de Cláudia Varejão (2015, 40 pp., 300 exemplares apenas), um leporello forrado a papel japonês com padrões tradicionais produzido a pretexto do filme homónimo. A criatividade contemporânea portuguesa tem trunfos para mostrar na cena internacional, e este é um dos meios de o fazer, mesmo que as tiragens sejam reduzidas, limitadas a colecionadores privados ou à curiosidade de bibliotecas ou museus ao pulsar artístico em todas as suas decantações.

Em todo o caso, atravessando meio século de foto-livros, nem numa só linha Livros de Fotografia em Portugal: da Revolução ao Presente se refere à diacronia tecnológica existente nesse período — e que tão patente está neste caleidoscópio de reproduções —, do analógico ao digital fotográfico, tanto quanto dos primórdios do offset à excelência da impressão dos nossos dias. E no entanto, sem o extraordinário progresso que a arte do livro — e do foto-livro — hoje exibe quotidianamente, e sem o absoluto controlo direto dos artistas sobre as suas produções impressas, o melhor do que aqui se vê (e do que aqui se não pode ver…) dificilmente existiria como tal. Ou não?