Pode dizer-se que é um livro sobre maternidades, mas isso seria afunilar o rodopio que o romance dá ao leitor. A filha única, parecendo incidir sobre uma temática, traz à tona a emoção humana, cheia de plenitude e de contradições, sem pó de arroz. O livro de Nettel, nascida em 1973, na Cidade do México, foi finalista do Booker Internacional 2023 e é difícil lê-lo sem se ficar abananado.
É certo: no seu cerne, há três mulheres confrontadas com a maternidade, cada uma com a sua valência, no que parece uma panóplia de possibilidades. Ainda assim, o livro não sabe a compêndio ou a manual, o assunto nunca aparece atirado a pontapé. Pelo contrário, a narrativa é orgânica; as personagens, fortes, coerentes por serem incoerentes – humanas, portanto; os capítulos, mergulhos.
Aqui, temos Alina: inicialmente, era-lhe impensável ter filhos. Finalmente, mudou de ideias e, após vários tratamentos de fertilidade, eis o entusiasmo com o nascimento de Inés, e depois o diagnóstico catastrófico: é-lhe anunciado, no oitavo mês de gravidez, que a filha não irá sobreviver ao parto, iniciando-se um processo de luto prévio ao nascimento. Laura, amiga de Alina, vai narrando a história do casal enquanto escreve também sobre a sua relação com a ideia de maternidade – impensável. Ao mesmo tempo, conta a história de Doris, a vizinha, mãe de um menino cujos gritos se fazem ouvir do outro lado da parede, sempre em conflito com a mãe alcoolizada.
Embora curto, o romance vai e toca em tudo. Há, da parte de Laura, uma visão sobre as crianças que não sabe a cinismo, mas que traz um discurso raro. Veja-se:
Durante anos, tratei de convencer as minhas amigas de que reproduzirmo-nos era um erro irreparável. Dizia-lhes que um filho (…) representaria sempre um limite à sua liberdade, um peso económico, para não falar do desgaste físico e emocional que causam: nove meses de gravidez, outros seis ou mais de amamentação, muitas noites sem dormir durante a infância, e depois uma angústia constante ao longo da adolescência.” (p. 16)
Aline escreve sobre o sacrifício da carreira e da vida pessoal, acreditando que a maternidade “não vale a pena”, e nunca deixa de trazer para as suas considerações o peso da parentalidade, que não raras vezes cai exclusivamente sobre a mãe. Daí, chega a incompreensão com a decisão de Alina, mais ainda perante os tratamentos de fertilidade que, antes da gravidez de Inés, a exauriram emocionalmente. É que, contra uma certeza, veio um desejo superior a qualquer racionalização. Nettell vai doseando tudo isto com eficácia, mostrando a mudança de Alina sob os olhos de Laura, trazendo as duas perspectivas no mesmo movimento. Para o leitor, esta estratégica é uma vantagem: não apenas tem acesso ao conteúdo de ambas as partes, em termos de enredo, como ainda tem acesso a uma cabeça sobre as decisões de outra.
Título: “A filha única”
Autora: Guadalupe Nettel
Tradução: Ana Maria Pereirinha
Editora: D. Quixote
Páginas: 232
Tudo isto dá densidade emocional a Laura, sem que se perca a de Alina – pelo contrário. A criança nasce e pouco se poderá dizer mais sobre o assunto sem se estragar o impacto de quem for ler. O que pode dizer-se é que A filha única surpreende o leitor a cada página, tanto no que concerne ao doseamento de emoções que a autora traz para a narrativa quanto no que concerne à fina inteligência com que a autora trata os temas a bisturi, de forma incisiva, rápida, completa. Lê-se e o mundo abre-se. É que o romance é mais do que o encadeamento de acções, assim como é mais do que um conjunto de reflexões: em vez disso, um e outro vão surgindo entrelaçados, agarrando o leitor que se quer meter no território intimista apresentado, descobrindo o passo seguinte, ao mesmo tempo que quer continuar a seguir as cabeças, os estados de alma que a autora vai criando de forma cirúrgica, impressionante.
Os três eixos da narrativa vão sendo desenvolvidos ao mesmo tempo, funcionando Laura como eixo propulsor, que permite a existência do romance enquanto todo orgânico, ao invés da junção de duas histórias que paralelizassem experiências diferentes. Em simultâneo, o leitor acompanha a vida de Alina e do marido, com o pré e o pós-parto de Inés, assim como a relação de Doris, que traz ainda a violência de um passado como força contundente que macula e forma a experiência de maternidade (vítima de violência doméstica, para além do trauma, tem de lidar com os resquícios de violência que o filho reproduz).
Em cada decisão tomada no encadeamento da narrativa e no desenvolvimento das personagens, Nettel dá ao leitor a verdade da vida que é encontrada nos pequenos toques do quotidiano. À medida que lê, o leitor dá por si no cerne de tudo o que importa: a família, a relação do humano com os outros, a decisão entre a morte como coisa definitiva e o prolongamento de uma vida que pouco mais tem do que um coração a bater, a esperança como motor de cada dia, o cuidado como condição sine qua non para mudar o destino às coisas, as certezas como aspectos mutáveis que se transformam noutras certezas, também mutáveis. E nisto aparece a vida em pleno como resultado das decisões de cada dia: tudo tem impacto e origem emocional, embora não haja sentimentalismo, antes a ambivalência da humanidade. Finda a leitura, fica apenas a sensação de que a narrativa podia ter avançado mais, no sentido de serem calibrados os eixos, parecendo ficar a faltar um capítulo que blindasse cada um. Ainda assim, criadas as relações de empatia, as personagens acompanham o leitor na pós-leitura como quem tem vida própria.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia