Podia ser a banda-sonora de um filme de David Lynch, a música que se ouve num cabaret com sofás em veludo vermelho e uma bola de espelhos a refratar a luz escassa, aquela canção que se apanhou numa estação pirata ao atravessar a Califórnia de carro descapotável no final dos anos 60, ou mesmo um êxito obscuro a saltar de uma jukebox num café em Queens na década de 70, mas é tudo isto em simultâneo, como uma matrioska musical, que em vez de sucessivas bonecas revela todos os rostos do rock’n’roll clássico, aqui Roy Orbison, ali 13th Floor Elevators, com (possível) cameo de Charles Manson.
Ou então, podia ser a maior homenagem a todas as variações possíveis e imaginárias da música de guitarras feita ali por altura de meio do século passado, quando a adolescência aderiu ao então nascente rock’n’roll. Mas são apenas duas horas de música de guitarra retro, música que não se limita a imitar o passado, antes remonta cada peça do guarda-fatos até que o cabide se torna utensílio de cozinha – não sabemos muito bem o que fazer com ele mas é impossível não o admirar.
E se editar 30 canções que ocupam mais de duas horas e se vestem do rock dos anos 60 para assaltar a nossa imaginação e nos transportar para um mundo que já não existe, nunca existiu, ainda mais estranho é que o disco não exista no Spotify – aliás, que só tenha presença no Youtube. Isto – seja lá esta maluqueira o que for – é Diamond Jubilee e Diamond Jubilee é para aí o sétimo disco de Cindy Lee que, por sua vez, é o projeto musical e drag de Patrick Flegel, antigo guitarrista e vocalista dos (das?) Women. Patrick usa como pronome “They”, uma opção que não é de fácil tradução no português corrente, que tem sempre género. Lidar com esta situação implica evitar os artigos definidos e os pronomes possessivos.
[o álbum “Diamond Jubilee”, disponível na íntegra no Youtube:]
Não fazemos ideia o que terá levado Patrick a achar uma excelente ideia criar toda esta música, que contém doo-wop (Wild one), disco-sound (em Olive drab, estranho disco-sound, mas ainda assim disco-sound e com uma bela linha de baixo), rock psicadélico (Flesh and blood) ou a canção que faltava a Twin Peaks (a espantosa Baby blue), sabemos apenas que: tinha razão, foi de facto uma excelente ideia.
Mas tudo nesta história parece ser complicado – ou até na história que antecede esta: os (as?) Women acabaram depois de supostamente a banda toda desatar à porrada entre si no final de um concerto; algum tempo depois, em fevereiro de 2012, um dos membros, o guitarrista Christopher Reimer, morreu durante o sono; durante algum tempo não se soube nada sobre a sua morte, mas mais tarde a editora Flemish Eye afirmou ter-se tratado de um problema cardíaco (como, em princípio, todas as mortes).
Os (as) Women eram canadianos (possivelmente canadianos com pouca vontade de que se soubesse muito a seu respeito, tendo em conta a escassez de informação), o que nos faz crer que Patrick será do Canadá, embora em entrevistas – não há muitas, mas há algumas – dadas nos últimos anos afirme viver na Carolina do Norte – mas seria incorreto responsabilizar a pobre carolina do Norte pela louca biblioteca aleatória de derivados do rock dos 60s e 70s que é Diamond Jubilee – se pensarmos bem, Women, US Girls e Dirty Beaches tinham todos um som rock retro e eram todas bandas canadianas – de Toronto, mais especificamente. Estou a culpar-te por isto, Toronto.
Ou então as rádios de Calgary, Canadá, mais especificamente a Calgary Flames Radio, que Patrick ouvia quando estava a crescer: “Durante o dia passavam oldies [canções antigas] e eu deixava naquela estação o dia todo. Música de dança, rap, coisas como o Beck, Soundgarden e assim, eu adorava isso tudo”, como disse em entrevista no final do ano passado. As ideias-chave aqui: oldies e o conceito de adorar “isso tudo”. Não se cria esta quantidade absurda de riffs, de dedilhados, de arranjos de harpa ou theremin (se não houver aqui um theremin então parabéns, imitaram muito bom), a quantidade absurda de melodias que podiam ter saído de um disco de Frank Sinatra (desde que acompanhado por uma banda rock rafeira e suja), não se produz TUDO ISTO sem de facto se gostar “disso tudo”.
Talvez a explicação para TUDO ISTO passe pela família de Patrick: “Tive a sorte de crescer numa família muito musical”, dizia Patrick, numa entrevista. O avô tocava guitarra, os irmãos dele tocavam acordeão, bandolim e guitarra. O pai de Patrick cresceu com essa música e também tocava acordeão – mais tarde tocou baixo numa banda de polka, “para fazer uns tostões extra”. O pai tinha umas guitarras à solta pela casa, e estas foram parar às mãos de Patrick e do irmão, que tocavam horas a fio, a aprender canções dos Nirvana e coisas que tais. A mão ajudava à festa cantando e era norma haver reuniões familiares ou de amigos em que toca a gente pegava em instrumentos e tocava e cantava.
Mas isso também não explica obrigatoriamente uma canção como Dracula, com uma linha de baixo incrível, sintetizadores e batuques, que recorda tanto os Can como os Broadcast; não explica a pop de Kingdom come ou o maravilhoso pesadelo de Lockstep (é apenas um riff repetitivo de guitarra, uma voz vinda do além e o que parece ser uma sitar mas não se consegue deixar de ouvir). Nem as outras 500 variações de toda a música do sub-mundo que Diamond Jubilee encerra, incluindo a dramática e belíssima Government Cheque (que inclui a linha “I can’t go on living / without you”, que – presumo – se refira ao mencionado cheque do governo, numa manifestação de humor adorável).
E nada disto explica a razão para lançar um disco duplo de 30 e tal canções, que nem sequer está presente no Spotify – embora isso talvez se deva ao asco que Patrick sente pela plataforma (e pelo dono dela). O asco estende-se a toda a indústria musical, à injustiça de dividir os royalties digitais 50-50, um asco que é notório em afirmações como “Acho que toda a gente devia tirar a sua música das plataformas de streaming. Nem sequer falo em fazer uma greve, simplesmente de retirar a música. Anda tudo a chorar tostões por cada canção tocada e dá pena. Que se foda essa gente, aquele Daniel Ek [o dono do Spotify] é um pedaço de merda”. Nota-se o asco, não se nota?
O que é ainda mais esquisito se pensarmos que só faz sentido lançar discos com tantas canções se o disco estiver numa plataforma digital – porque o número de canções aumenta as hipóteses de uma delas ser tocada muitas vezes. Nem sequer é percetível como é que Patrick (ou a versão drag de Patrick, que lidera a banda de uma pessoa só) pretende fazer dinheiro de Diamond Jubille – além do Youtube o disco só se encontra disponível numa obscura página online, que presumo ser o site da banda – e aparenta ser um site à moda dos anos 90. Se fizerem scroll down pergunta-se se seria possível a quem ali vai parar fazer uma doação de 30 dólares canadianos via PayPal (só dólares canadianos e só via PayPal), e se isto é uma estratégia comercial eu sou um abacate.
É tudo um mistério: o que Patrick queria fazer deste disco, como pretende ganhar dinheiro com ele, como é que as pessoas descobriram isto, como é que de repente se tornou um dos discos mais falados do ano. Quem ouve uma tão inóspita coleção de canções? Não ouçam Diamond Jubilee como se ouve um disco tradicional, pensem nele como uma rádio sem uma playlist rígida, ou uma playlist retro, que agrega dobras sobre dobras da música de guitarra do passado e o faz sem um sentido óbvio, mas com um brilhantismo que transcende todas dúvidas e confusão que envolvem o objeto.