Ao olhar para a indústria cinematográfica norte-americana da década de 1970, é fácil resgatar histórias mirabolantes ou até criá-las a partir de um pequeno detalhe de enorme potencial narrativo. Pense-se, por exemplo, no recente caso de The Sympathizer (HBO Max) e de como Hollywood se mistura com o Vietname e a CIA e tudo faz perfeito sentido. Os tempos eram outros, a abordagem ao cinema também e, sobretudo, havia uma atitude potenciada pelo clima da época (Guerra Fria, Vietname, transformações sociais, os baby boomers queriam mudar o mundo, dinheiro, ou a falta dele). Era legítimo acreditar num qualquer horizonte impossível. Graças a isso, hoje essa década é terreno fértil para criar ficção a partir das coisas que aconteceram e até das que não aconteceram mas podem ser imaginadas.
Ao contrário de The Sympathizer, nem tudo é ficção em The Big Cigar. A história parte de um artigo de Joshuah Bearman, jornalista fértil em vender as suas histórias para Hollywood (sendo a mais popular a de Argo, transformada em filme por Ben Affleck). Mais uma vez, estamos nos 1970s e o tema é a fuga de Huey P. Newton (André Holland), fundador do grupo ativista Black Panther, para Cuba em 1974, onde ficou até 1977. A história dava um filme e, vai daí, fez-se uma minissérie de seis episódios com mão de Don Cheadle e Jim Hecht (um dos responsáveis pela maravilha em forma de série que é Winning Time). Porque é que dava um filme? Porque para levar Newton dos Estados Unidos para Cuba em 1974, quando era perseguido pelo FBI, o plano passou por produzir uma longa metragem que nunca aconteceu.
[o trailer de “The Big Cigar”:]
É aqui que entra Bert Schneider (interpretado por Alessandro Nivola), produtor — na vida real e, por consequência, nesta ficção — de filmes como Easy Rider, Destinos Opostos ou A Última Sessão. Filmes marcantes na viragem dos sessentas para os setentas, mais do que marcar uma geração, um tempo, construíram e alimentaram um imaginário sobre essa época durante décadas, ainda hoje: a liberdade daqueles anos, a consciência da mesma e respetivas consequências. Mas para o Schneider de The Big Cigar o cinema era bom e tal, mas era preciso mais para marcar a diferença. Queria, como tantos, transformar o mundo. E vê na causa Huey P. Newton essa oportunidade.
[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]
The Big Cigar (dois primeiros episódios esta sexta-feira, 17 de maio, na Apple TV+) conta essa história, à boleia de outras narrativas — como por exemplo, a fundação dos Black Panther e as razões por detrás das perseguições ao criador da organização política. Há uma certa leveza em como algumas temáticas em volta de Huey e dos Black Panther são abordadas, mas há um genuíno esforço de infiltrar o homem nos domínios paranoicos da história. Afinal, é também nos anos 70 do século passado que acontece a trilogia da paranoia de Alan J. Pakula: Klute, A Última Testemunha e Os Homens do Presidente. Os argumentistas e realizadores de The Big Cigar estão conscientes de que esses filmes existiram e usam essa energia para alimentar a veia conspirativa desta minissérie. Ou seja, é mais Pakula do que, por exemplo, White House Plumbers, para lembrar outra série recente e mais ou menos nestes contornos que se passa nessa década.
Mais do que levar Newton do ponto A ao ponto B, como inicialmente é sugerido na abertura de The Big Cigar, a história anda para trás e para a frente para trabalhar — bem — as diversas motivações por detrás das personagens e o que as puxa a fazer ou não determinada coisa em determinado momento. Por exemplo, os problemas do protagonista não são apenas com o FBI, mas também com os próprios Black Panther, já não reconhece o grupo que fundou e, pior, sente-se perseguido por dentro, imaginando — por diversas vezes com razão — que estão a ser vigiados ou até infiltrados. Ou até Schneider, que começa a duvidar que seja capaz de levar a produção de um filme falso avante.
Há um sentido de missão e um questionamento dessa missão em The Big Cigar. Talvez por isso, as coisas às vezes se confundam. Brinca-se ao thriller, mas o thriller nunca é totalmente concretizado; há uma certa abordagem ao FBI que não se percebe bem se está a ser divertida ou se está a levar-se demasiado a sério; e, por vezes, esquece-se do real propósito de tudo. Nenhum destes defeitos é necessariamente coisa má, The Big Cigar só quer ser demasiado entretenimento para o seu próprio bem e perder o rumo até vai bem com a atribulação da narrativa.
Na base, The Big Cigar tem aquilo que a Apple TV+ faz bem: aproveitar boas histórias e jogá-las no “não-óbvio”, cruzando géneros sem temer o pior. O clima conspirativo é bem mais interessante do que o filme falso para fazer Newton viajar e é nele que se navega ao longo das quase seis horas. No final, perdemo-nos inevitavelmente na ideia de que os 1970s foram — de forma simplista — do caraças. Fazer algo assim parecia tão difícil mas possível, quando hoje parece tão fácil e impossível. E, mesmo que fosse possível, parece que este tipo de imaginação já se esfumou do clima de guerrilha. Involuntariamente, The Big Cigar é também uma ode a isso.