Ao ver o nome de Park Chan-Wook associado a uma série, não é pecado esperar “mais um realizador consagrado rendido ao mundo da televisão”, com todas as ambiguidades que tamanha citação carrega em relação ao resultado final. A experiência recente tem dado bons resultados — lembremos Guy Ritchie com The Gentlemen (Netflix) —, mas pensar rápido pode ser uma armadilha. Chan-Wook está associado a outra série. E não estamos a falar de Snowpiercer, na qual o sul-coreano tem crédito de produtor. Trata-se de Little Drummer Girl, minissérie baseada no romance de John Le Carré, com Michael Shannon, Alexander Skarsgard e Florence Pugh pós-Lady Macbeth e pré-Midsommar num dos melhores papéis da sua — ainda — curta carreira. Little Drummer Girl é uma pérola, mas é possível que seja daquelas coisas que nunca tenha visto, até porque entre nós passou meio despercebida. Isso pode ser resolvido em pouco menos de seis horas, uma vez que a série está disponível na HBO Max, plataforma onde se estreia — esta sim, nova — The Sympathizer.
Ainda sobre Little Drummer Girl: uma série de espionagem que desbundava com grande à-vontade através dos meandros dos códigos da atividade e interiorizava (como poucas produções conseguiram) — o conhecimento do espectador. Se por vezes nos sentíamos um corpo estranho naquela viagem, a personagem de Florence Pugh acompanhava-nos nessa estranheza, sentíamo-nos como ela, desamparados e à procura de uma solução meramente individualista para sair daquela teia de contraespiões num cenário israelita. O tempo de uma série permitia a Park Chan-Wook experimentar com isso, ir para a frente e voltar para trás, brincar com a perceção do espectador e respetivas expectativas em relação às personagens e ao desenlace. Ao longo das seis horas, sentíamo-nos sempre inseguros, numa corda bamba, como um permanente teste à inteligência.
[o trailer de “The Sympathizer”:]
O código é então refinado em The Sympathizer, outra série de espionagem, esta uma adaptação do romance homónimo de Viet Thanh Nguyen, de 2015, vencedor do Pulitzer de ficção em 2016. Ao contrário de Little Drummer Girl, não é inteiramente realizada por Park Chan-Wook, que assina apenas os três primeiros episódios (os outros quatro são da responsabilidade de Fernando Meirelles e Marc Munden), mas o argumento é na íntegra do sul-coreano em parceria com Don McKellar (também um dos cocriadores). No total, são sete episódios sobre a história de um espião que está numa constante dualidade entre o que é, o que faz e o que tem de fazer.
No centro está uma personagem que iremos conhecer apenas como The Captain (Hoa Xuande) — no livro não tem nome. Onde e quando? Finais da guerra do Vietname. A série arranca com o tal capitão como prisioneiro político a recontar a história dos meses anteriores. Cada episódio é um capítulo dessa história, que recupera — ou reconstrói — perante a atenção dos guardas prisionais. E as participações de estrelas como Sandra Ho ou Robert Downey Jr. (que também é produtor) servem sobretudo os propósitos do protagonista — apesar do brilho especial de Downey, que consegue ocupar um lugar essencial sem ser o nome principal da trama, habilidade que lhe fica tão bem.
O início do primeiro episódio fornece as dúvidas necessárias para que tenhamos um pé atrás face a tudo o que The Captain diz: vemo-lo a escrever a história da sua saída do Vietname e a ser forçado a escrevê-la de novo, como se as versões que tivesse entregado até então não fossem convincentes, verdadeiras ou encostadas à ideia de uma hollywoodização da vida. Fica a dúvida: está The Captain a contar-lhes — e a contar-nos — a verdade ou a escrever um guião imaginado sobre a sua vida?
Mas jogar com as expectativas faz parte da espionagem de The Sympathizer. The Captain é do Vietname do Norte e infiltrou-se nas forças militares das forças do Sul, que contam com o apoio dos norte-americanos. The Captain é amigo da CIA e o braço direito do seu general e, em simultâneo, envia informações para os comunistas e acata ordens deles. Uma delas manifesta-se logo no primeiro episódio, quando, durante a queda de Saigão, The Captain prepara a saída dos militares com quem trabalha dando a entender que não planeia fugir com eles para os Estados Unidos. Contudo, as ordens são para que vá, para que não passe pela vitória dos comunistas na sua terra e prossiga em viagem para a América enquanto espião.
A vida nos Estados Unidos adensa o mistério e cada episódio oferece contornos ora macabros, ora hilariantes. Como dizíamos, a deambular por The Sympathizer está Robert Downey Jr., interpretando uma série de personagens e funcionando quase como uma espécie de diabo da consciência de The Captain. Quanto ao protagonista, nos Estados Unidos tem de encontrar um balanço entre a expectativa de uma nova vida lá e a manutenção das suas obrigações enquanto espião.
Tal como em Little Drummer Girl, Park Chan-Wook trabalha todas estas camadas como uma obra longa deve ser esculpida. Afastemos a ideia de filme longo, convençamo-nos de que o tempo faz maravilhas — Ripley é um bom exemplo recente disso — e de que esse tempo permite ao espectador gerar sentimentos — afetivos e morais — sobre tudo o que se passa na narrativa de The Sympathizer. Se durante anos o realizador sul-coreano deleitou-se a tratar do tema de vingança no cinema (Sympathy For Mr. Vengeance, Old Boy ou Lady Vengeance), explorando as convenções ocidentais do thriller, na televisão parece ter encontrado formas modernas de brincar com os modelos da ficção de espionagem. Tal como nos filmes, aqui somos bem manipulados.
Em The Sympathizer há um espião que também está a ser argumentista da sua própria história de espionagem, alimentando a todo o momento a pergunta sobre que verdade é esta que nos está a ser contada? Se Florence Pugh era uma âncora em Little Drummer Girl, Hoa Xuande e o seu The Captain são a tempestade — uma que, como raramente acontece, é bem-vinda.