Há um popular chavão que reza que “a diferença entre ficção e realidade é que a ficção tem de fazer sentido”, frase atribuída tanto a Mark Twain como a Tom Clancy. O caso dos Milli Vanilli é um daqueles que, se fosse num filme, pareceria demasiado rebuscado e inverosímil. Mas, na vida real, depressa se tornou num dos contos mais infames da música pop, capaz de fazer de estandarte para quem descarta o mainstream como uma mera construção oca para efeitos comerciais. Para quem não conheça, a história conta-se numa frase: um popular duo de giraços que afinal só vazia playback de umas vozes quentes e maduras que nem eram deles, mas sim de uns indivíduos visualmente bem menos apelativos. Mas se há coisa em que ficção e realidade são iguais é na busca de encontrar uma lição, uma moral. E nisso, a saga de Rob Pilatus e Fab Morvan é exemplar.
O filme documental com o simples título de Milli Vanilli chegou agora à SkyShowtime, apesar de se ter estreado noutros pontos do globo no ano passado. Os primeiros instantes são com o ecrã a negro, ouvindo-se um depoimento áudio de Rob, no qual se destaca logo o seu inglês com um cerradíssimo sotaque alemão. Este sotaque, aliás, é parte da mitologia desta história: como é que alguém com esta voz cantava depois num inglês impecável? Mas, na altura, o mundo estava ainda focado na beleza e sentido estético marcante do jovem da Baviera e do seu amigo francês. Só quando os Milli Vanilli chegaram à sextupla platina com o seu disco de estreia e venceram o Grammy para Best New Artist (contra Neneh Cherry, Soul II Soul, Indigo Girls e Tone Lōc) é que a mentira começou a ter perna curta para acompanhar tal maratona.
[o trailer do documentário “Milli Vanilli”:]
O documentário tem um ângulo assumido deste o início: Rob Pilatus e Fab Morvan foram os grandes sacrificados quando a grande falcatrua se soube, mas terão sido eles os grandes culpados? Milli Vanilli é sobre a busca de um vilão e sobre como o sucesso e o poder corrompem. O resultado deste julgamento acabará por ser de cada espectador, até porque são vários os depoimentos e as contradições, mas o interesse para lá da história já conhecida é mesmo a reflexão sobre a tentação, a falha e a impunidade. Os testemunhos mais marcantes vão de Fab a Ingrid Segieth (a secretária da editora alemã, que além de uma espécie de tutora da banda, acabou por fazer as vezes de madrinha por ter como alcunha Milli), mas Frank Farian, o grande ideólogo do duo, recusou falar. Farian tentou passar entre as gotas da chuva da polémica, tendo sido quem revelou ao mundo o playback, e é também o criador dos Boney M. Apesar do seu esforço por controlar a narrativa a seu favor, não conseguiu evitar que, quando morreu no início deste ano, as manchetes tenham sido frases como “Morre Frank Farian, o produtor que arquitetou a maior farsa da música pop”.
Rob Pilatus aparece apenas em entrevistas antigas, já que morreu em 1998, de overdose, depois de anos de vícios que o levaram até à condição de sem abrigo. E é uma pena que tenham de ser outros a contar a sua história, usando-o como arma de arremesso. Rob não resistiu ao vexame da polémica, o miúdo órfão que só queria era que gostassem dele — terá valido a pena o sucesso e o dinheiro que tantos dos envolvidos ganharam, se custou uma vida? O documentário está cheio de managers, tipos da editora Ariola Records e apresentadores da MTV a dizer que não faziam ideia do esquema do playback, deixando sempre a dúvida se terá sido mesmo assim.
Para lá da sumarenta história de uma mentira, o documentário aborda temas complexos, da potencial exploração de artistas negros ao facto da ditadura da beleza não ser de todo um problema criado por esta nova geração cheia de filtros de Instagram. Mas fica a ideia: será que, no fundo, queremos que a pop nos engane, num número de ilusionismo do qual somos cúmplices, a bem do escapismo do qual tanto precisamos? Numa altura em que a moda das estrelas mainstream é serem “reais” (veja-se o fenómeno Taylor Swift e como os fãs a tratam como uma amiga de longa data), estamos preparados para perceber que acreditar que as nossas estrelas pop têm esta ou aquela característica pode de todo não corresponder à verdade? Milli Vanilli não responde a isto, mas dá preciosas pistas para tecermos as nossas próprias considerações, o que já é muitíssimo.