Irene Solà, nascida em 1990, é escritora, poeta e artista plástica catalã. Eu canto e a montanha dança, o seu segundo romance, já foi traduzido para mais de vinte línguas e agraciado com os prémios Cálamo Otra Mirada, Anagrama de Romance, de Narrativa Maria Àngels Anglada e da União Europeia para a Literatura. Lendo-o, percebe-se bem que impressiona.
O romance tem um tom oral, de história mais ouvida do que lida, o que tem a sua graça, tendo em conta as vozes narrativas. Já lá vamos. Abrimos o livro e estamos numa das encostas dos Pirinéus. Ali, Domènec, lavrador, tentava soltar um bezerro preso nos arames de uma cerca durante um chuva torrencial. Foi então que morreu fulminado por um raio. Além de lavrador, convém dizer, Domènec era poeta oral: dizia poemas quando ninguém o ouvia, pensando-os (para quê o silêncio, se não havia ouvidos por perto?). E a morte dera-se quando saíra para dizer poemas e escapar da vida doméstica.
O primeiro capítulo – e nota-se logo a originalidade da voz narrativa – é narrado pelas nuvens cujo embate provocou o raio. Logo à cabeça, o leitor dá por si perante uma prosa multifacetada, assim como perante multifacetados narradores, numa narrativa não convencional que inclui as vozes de fantasmas, cogumelos, animais, montanhas – e humanos, vá. Assim, com abordagens plurais, as histórias atam-se umas às outras, num arco narrativo que toca em várias décadas. Solà faz muito mais do que descrever a natureza. Em vez disso, ei-la como cérebro e como criadora de texto. Com isso, temos a vida entre as gentes – a dor da viúva de Domènec, por exemplo, com o seu fluxo de consciência ininterrupto e a sua prosa introspectiva, o seu desgosto com os filhos, a mágoa de uma vida que correu como não quis – e a voz de objectos estáticos. É uma experiência estética de valor, claro, mas ultrapassa-a, uma vez que os actos discursivos sustentam as narrativas, ao invés de as serem. Encarando a grande e a pequena escala em simultâneo, a autora vai ao osso da vida, pegando no passado como coisa viva, coisa que fala ao ouvido. Os elementos surrealistas não chegam, por isso, a distrair, antes a adensar as teias tecidas.
Título: “Eu canto e a montanha dança”
Autora: Irene Solà
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 192
Assim, o que sobressai da experiência de leitura é a sensação polifónica imersiva, de vozes que vêm de vários pontos das cenas, contrapostas e coadjuvantes em simultâneo, criando uma leitura acordada e surpreendente. Logo à cabeça, é fácil julgar-se que o romance vai focar-se na família de Domènec, mas, volvidas algumas dezenas de páginas, percebe-se que a ideia de personagens principais também foge ao convencional. Com o alcance temporal, o que fica inteiro na prosa é a própria cordilheira, ali entre França e a Catalunha. Ora, essa cordilheira é, à vez, coisa una e divisível, com cada um dos seus elementos passíveis de terem voz narrativa, sabendo o leitor sobre os Pirinéus não porque alguém escreve sobre eles, mas porque eles se contam a si mesmos, dando uma visão caleidoscópica sobre o que aparentemente não passa de paisagem. A cordilheira observa, mas nem por isso se imiscui, e testemunha a vida como existiu nas últimas décadas, com a inquisição católica e a guerra civil espanhola. Não há propriamente uma pretensão didática, antes pelo contrário: o texto flui, o leitor recebe-o, e participa nele por ter de descortinar o peso de cada voz.
Nisto, as vozes humanas contrastam, já que se voltam mais para o presente, ainda que o signifiquem à luz do passado, regra geral próximo: é o caso da viúva que escreve sobre a viuvez ou o desalento com os filhos. A vida de todos os dias aparece, no mesmo romance, em simultâneo com um olhar intergeracional, ressignificando a vida e o peso de cada evento. Na vida humana, a passagem do tempo é trágica – implica morte, por exemplo. Entre a natureza, tudo são ciclos e o drama humano aparece como coisa pequena, irrelevante, até previsível. Exemplo da voz das nuvens no pós-morte:
Então retirámo-nos. Extenuadas. E olhámos para a obra realizada. As folhas e os ramos pingavam, e nós fomos, vazias e lassas, para outro lado.
Uma vez chovemos rãs e outra vez chovemos peixes. Mas o melhor é granizar. As pedras preciosas precipitam-se sobre as aldeias e os crânios e os tomates. Redondas e congeladas. E enchem os socalcos e as veredas de um tesouro de gelo.” (p. 17)
Esse olhar sobre a aparente pequenez tem o seu quê de ironia, mas quando a experiência humana fala por si os capítulos renascem com fulgor revigorado – por terem gente dentro e quebras de expectativas. Exemplo da voz humana sobre o mesmo evento:
E o Hilari foi a criança sem pai mais feliz do mundo. Eu tive as crianças sem pai mais felizes e menos órfãs que já existiram. Que sorte. Embora às vezes uma mulher queira deixar de viver. Quando o nosso marido é atravessado por um raio como se fosse um coelho. Quando uma mulher fica com o coração esburacado por um ramo, mas não morre. Uma mulher quer deixar de viver. Mas então obrigam-na a viver.” (p. 27)
O leitor vai saltitando entre uma e outra abordagem, sendo sempre surpreendido, sendo arrastado por uma prosa feita em jeito de corrente. O estilo fragmentado cria ainda uma espécie de texto relacional, aparecendo sempre tudo em perspetiva, daí que a leitura seja permanentemente dinâmica. Não será um livro para quem exige enredo – embora este exista, claríssimo, depurado, nos capítulos de humanos –, mas é certamente um livro que usa a prosa como músculo maleável.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.