Donald Sutherland, que morreu aos 88 anos, nunca foi uma estrela de cinema nem uma vedeta convencional. Era, isso sim, um ator completo e eclético, intenso e carismático, e com um alcance dramático a perder de vista. Tinha a rara capacidade de ser muito bom quase a 100 por cento, fosse o seu papel de protagonista, fosse de secundário ou “característico”, interpretasse uma personagem positiva ou odiosa, um homem vulgar e decente ou uma figura extravagante e fora do comum. Sutherland conseguia ser grande em pequenos papéis, memorável em filmes descartáveis, transformar em principal uma personagem de segundo plano, aparecer apenas cinco ou dez minutos e dar a impressão que tinha estado no filme todo, tirar o máximo de uma figura com pouco para dar, fazer o difícil parecer fácil, o rotineiro excecional e o mau suportável.

A sua longevidade na tela (estreou-se no cinema em 1964, numa fita de terror ao lado de Christopher Lee, cumprindo assim 60 anos de carreira este ano) não foi acompanhada por papéis à altura do seu talento, estatuto e multivalência, a partir dos anos 90, e não é por acaso que, salvo algumas excepções (caso de Seis Graus de Separação, de Fred Schepisi, JFK, de Oliver Stone, ou Space Cowboys, de Clint Eastwood), alguns dos seus melhores trabalhos recentes foram em séries de televisão e de streaming, enquanto que no cinema passeava o seu porte e as suas barbas brancas de elder statesman em fitas que iam desde pequenas produções independentes a bisarmas de estúdio como a série Jogos da Fome. Escolhemos dez de entre as várias interpretações mais marcantes e inesquecíveis de Donald Sutherland, quase todas das décadas de 70 e 80, os seus “anos de ouro” no cinema. 

“Heróis por Conta Própria”

De Brian G. Hutton (1970)

Sutherland quase que “rouba” o protagonismo a Clint Eastwood e leva este filme de acção passado na II Guerra Mundial para casa debaixo do braço, com a sua vistosa interpretação do insólito sargento Oddball, uma espécie de proto- que é senhor absoluto a bordo do seu tanque Sherman, sempre com mulheres penduradas, ouve música folclórica esquisita e ataca ao som de country & western, e tem algumas das melhores tiradas da fita.

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“M*A*S*H”

De Robert Altman (1970)

Embora passado na Guerra da Coreia, este filme de Robert Altman está na verdade a falar sobre o Vietname e a passar uma mensagem anti-guerra. Donald Sutherland, à época um opositor radical a este conflito, ficou muito marcado pelo seu papel do gozão médico militar Hawkeye Pierce, que contribuiu nessa altura para a imagem anti-convencional e contestatária do actor, aqui em parceria com Elliott Gould.

“Klute”

De Alan J. Pakula (1971)

Dando corpo ao detetive particular do título, John Klute, que investiga o desaparecimento de um amigo e a única pista que tem liga-se com uma prostituta de Nova Iorque, Bree (Jane Fonda), Donald Sutherland afasta-se aqui dos seus papéis extravagantes e expansivos anteriores, esmerando-se numa interpretação dominada pelo laconismo, pela sugestão e pela interiorização das emoções.

“Aquele Inverno em Veneza”

De Nicolas Roeg (1973)

Um dos momentos mais altos do actor no cinema. Um casal que chora a morte recente da filha pequena por afogamento vai para Veneza no Inverno, e o pai julga ver a menina, usando o casaco com um capuz vermelho com que morreu, em vários pontos da cidade sombria e despovoada de turistas. A interpretação de Sutherland, que contracena com Julie Christie, combina tormento, desatino e esperança, até à revelação final.

“Casanova”

De Federico Fellini (1976)

Fellini disse que tinha escolhido Donald Sutherland para personificar Casanova porque considerava a personagem um idiota e um imaturo, e que só um actor com o seu profissionalismo conseguiria encarná-lo e transmitir essa imagem. E Sutherland fê-lo, sob uma pesada maquilhagem, com uma interpretação estilizada que sublinha o ridículo precioso e convencido de Casanova, fazendo dele o autómato do sexo e “banco de esperma ambulante” desejado por Fellini.

“Voo das Águias”

De John Sturges (1976)

Neste estupendo filme de guerra em que um grupo de páraquedistas de elite alemães é incumbido da missão de ir a Inglaterra, passando por militares americanos, e matar Winston Churchill, Donald Sutherland tem uma das suas mais memoráveis prestações de secundário “principal”. Ele é Liam Devlin, um militante do IRA que vai ajudar os alemães, um individualista astuto, inteligente e amante do belo sexo, que Sutherland torna imediatamente simpático e faz rivalizar com a personagem de Michael Caine, o líder do comando, como personagem central do filme.

“1900”

De Bernardo Bertolucci (1976)

Só mesmo um ator como Donald Sutherland podia safar-se com uma personagem caricatural até à medula como o ultra-fascista Attila, de uma crueldade sem limites e pronto-a-execrar, que mata animais e criancinhas com a maior brutalidade, sem a menor hesitação nem qualquer sobressalto de consciência, em radical contraste com os “bons” comunistas. Sutherland põe um gozo sádico na forma como o interpreta, espremendo a maldade intrínseca da personagem até à última gota.

“Gente Vulgar”

De Robert Redford (1980)

No seu primeiro filme como realizador, um drama sobre uma família estilhaçada após a morte acidental do filho mais velho, Robert Redford deu a Donald Sutherland um dos melhores papéis da sua carreira. Ele é o pai apanhado entre a mãe amargurada e inconformada com a perda do filho favorito, e o filho mais novo roído pela culpa, em depressão e com tendências suicidas, e ultrapassado pelos acontecimentos, apesar de toda a sua boa-vontade e compreensão. Incrivelmente, Sutherland não foi nomeado para o Óscar de Melhor Ator.

“O Buraco da Agulha”

De Richard Marquand (1981)

Donald Sutherland dá corpo, nesta adaptação do thriller de Ken Follett, a Faber, um implacável espião nazi que mata com um estilete (daí a alcunha de “Nadel”, “A agulha”), que recolhe em Inglaterra informações sobre o Dia-D, mas fica retido numa ilha perto da costa da Escócia, com uma rapariga e o seu marido aleijado, acabando por se envolver com ela. Sutherland humaniza a personagem e transmite a sua complexidade, evitando que Faber seja mais um vilão esquematicamente odioso e estereotipado.

“Mar de Chamas”

De Ron Howard (1991)

Um grande ator é aquele a quem é dado um pequeno papel num filme cheio de vedetas que estão em cena muito mais tempo do que ele, e torna a sua participação memorável. É precisamente o que Donald Sutherland faz em Mar de Chamas, em que interpreta o “Hannibal Lecter” dos pirómanos, como alguém lhe chamou, e aparece apenas um par de vezes. Mas chegam para que nunca mais nos esqueçamos do seu arrepiante Ronald Bartel. “Quem é que não gosta de fogo?”.