Morreu Fausto Bordalo Dias, cantor e compositor português. Tinha 75 anos. O músico morreu durante a noite, vítima de doença prolongada, confirmou o agente ao Observador. Autor de discos como Por Este Rio Acima, O Despertar dos Alquimistas, Para Além das Cordilheiras, A Preto e Branco ou Crónicas da Terra Ardente e de canções como O barco vai de saída, Como um sonho acordado ou A guerra é a guerra, é um dos mais influentes cantautores da história da música popular portuguesa.

O seu último álbum, Em busca das montanhas azuis, foi lançado em 2011 e conta com arranjos musicais de José Mário Branco. Ao todo, gravou 12 discos, entre 1970 e 2011. Um dos seus concertos mais marcantes ocorreu em julho de 1997, em Belém, nas celebrações dos 500 anos da partida de Vasco da Gama para a Índia. Na memória recente ficaram também os espectáculos Três Cantos, que deu com Sérgio Godinho e José Mário Branco (e que depois foram editados em disco e DVD).

“Por Este Rio Acima”: a epopeia encantada de Fausto Bordalo Dias, 40 anos depois

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Fausto Bordalo Dias foi presença constantes entre as gravações e atuações ao vivo da geração que, antes e depois do 25 de Abril, protagonizou o movimento da canção de protesto. Nesse contexto, esteve também presente na fundação do Grupo de Acção Cultural — Vozes na Luta (GAC), juntamente com José Mário Branco, Afonso Dias e Tino Flores. Mais tarde, acabaria por ser protagonista de uma das mais criativas e influentes formas de aliar linguagens músicas distintas, entre a tradição portuguesa e africana e as linguagens pop rock, trabalhando com semelhante cuidado a melodia, a harmonias e a poesia que cantava.

Nascido a bordo do navio Pátria, durante uma viagem entre Portugal e Angola, Fausto Bordalo Dias foi registado em Vila Franca das Naves, Trancoso. Foi em Angola, de onde regressara anos mais tarde, que formou a sua primeira banda, Os Rebeldes. Acabou por se fixar em Lisboa, em 1968, quando entrou no antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, atual ISCSP – Universidade de Lisboa, para se licenciar em Ciências Sócio-Políticas. É nessa época que grava Chora, amigo chora, que em 1969 lhe deu o Prémio Revelação do antigo programa de rádio Página Um, transmitido pela Rádio Renascença.

Pró que Der e Vier (1974) e Beco sem Saída (1975) contam-se os seus dois trabalhos iniciais marcados pela experiência revolucionária. A esses seguiram-se Madrugada dos Trapeiros (1977), que inclui a canção Rosalinda, Histórias de Viajeiros (1979), que abre já caminha a Por Este Rio Acima (1982), o seu grande sucesso, inspirado na obra Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. Com Para Além das Cordilheiras (1989) venceu o Prémio José Afonso. “Com Fausto, é toda uma viagem pelo universo dos sons, da memória coletiva, do sentir mais profundo que nos une enquanto comunidades”, lê-se na página dedicada ao músico.

A cerimónia fúnebre decorrerá na terça-feira na Voz do Operário, em Lisboa, entre as 18h00 e as 23h00. O funeral, na quarta-feira, será reservado à família, acrescentou a agência funerária.

“Completamente ímpar”

Entretanto, sucedem-se as reações à morte do músico. O primeiro-ministro, Luís Montenegro, diz que “o contributo que [Fausto Pinto] deu à música e à portugalidade são eternos”. “A música de Fausto Bordalo Dias encantou-nos durante décadas. É com profundo pesar que recebo a notícia da sua morte, que não significa o seu desaparecimento”, escreveu o primeiro-ministro na rede social X.

Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, considera que o seu legado musical se confunde com a própria história de Portugal. Numa nota de pesar publicada no sítio oficial da Presidência da República na Internet, Marcelo Rebelo de Sousa afirma que “recebeu com tristeza a notícia da morte de Fausto Bordalo Dias, que ao longo de décadas deixou um legado musical que se confunde com a própria história de Portugal”. “Fausto pertencia a uma constelação de músicos que traduziu para as canções de intervenção o sentimento do povo português, e é por isso inevitável associar o nome de Fausto aos nomes maiores da música portuguesa, como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho”, acrescenta-se na mesma nota. O chefe de Estado envia “as mais sentidas e afetuosas condolências” aos familiares e amigos de Fausto Bordalo Dias.

O Ministério da Cultura, liderado por Dalila Rodrigues, sublinha, em comunicado enviado às redações, o “profundo pesar pelo falecimento do músico Fausto Bordalo Dias, cuja obra fica para sempre ligada ao movimento de oposição ao regime ditatorial português e de resistência contra o fascismo”.

Também o secretário-geral do PS já reagiu. Numa nota, publicada no site do partido, Pedro Nuno Santos lembra “o guitarrista, o cantor, o compositor, o poeta, o cidadão atento e comprometido com as causas da cultura”. “Manifestando o nosso profundo pesar pelo falecimento de Fausto Bordalo Dias, prestando-lhe homenagem e transmitindo à sua família e amigos as mais sentidas condolências”.

O músico Sérgio Godinho, que trabalhou com Fausto Bordalo Dias, reagiu à morte do músico: “Inventou uma estética muito própria” o que faz dele “alguém muito identitário”, disse. “O desaparecimento do Fausto é um acontecimento muito triste embora infelizmente esperado”, disse o cantor e escritor à agência Lusa, admitindo saber que Fausto se encontrava doente. “Era um grande criador, intérprete, criador de letras e músicas e criou um universo próprio, muito pessoal e muito personalizado. A gente consegue dizer aquela canção é do Fausto porque de facto ele tinha um carimbo”, frisou.

Também o PCP já salientou o papel de Fausto Bordalo Dias, “criador de muitas das mais belas canções portuguesas ao longo de toda a sua carreira artística”, lê-se numa nota enviada às redações pelo partido. Os comunistas salientam que “jamais esquecerão o facto de Fausto Bordalo Dias ter aceitado o convite, em 1985, para fazer o arranjo musical de A Carvalhesa, música popular portuguesa, originária de Trás-os-Montes que acompanha a atividade política do PCP em sucessivas campanhas eleitorais e na Festa do Avante!, que desperta de forma viva e entusiástica a alegria e confiança no futuro”.

À rádio Observador, David Ferreira, antigo responsável editorial na indústria musical portuguesa, lembrou o momento tardio em que conheceu Fausto: “Por volta de 2005, 2006, o António Macedo fazia as manhãs da Antena 1 e às vezes convidava uma pessoa para levar uma série de discos e depois havia uma conversa em volta dos discos. Até tinha tido alguma dificuldade em escolher. E uma das coisas que escolhi, uma canção do fausto, A Ouro e Prata, uma canção de que as pessoas falam pouco. Não tem um sentido óbvio, é a história de uma relação entre uma prostituta de luxo e um especulador financeiro. Expliquei o porquê da escolha e nesse dia, mais tarde, recebo uma chamada de uma voz que não conhecia, era o Fausto, Apresentou-se simpaticamente, para agradecer.”

“Fausto era cerca de 20 anos mais novo que o José Afonso, mas entrou na vida musical de toda aquela geração”, lembrou ainda David Ferreira. “Aparece com muitos deles porque era um excelente músico. Mais tarde protagoniza algum radicalismo próprio daquele período e depois surgem então todos os discos que fez a pensar nas viagens dos portugueses, a relação com África. É muito importante pela maneira como se transforma numa influência.”

O músico Hélio Morais, a solo ou como elemento dos Linda Martini e dos Paus, assume ao Observador que “Fausto teve um impacto mais recente na minha vida”: “Comecei a explorar a sua obra nos últimos 10 anos. Apesar de ser algo que se ouvia em todo o lado na altura, estava interessado noutras coisas. Estava naquela fase de rejeitar a música que se ouvia em casa, em detrimento de outros sons mais disruptivos. Comecei a interessar-me por descobrir o seu trabalho para conhecer um pouco melhor a história da música portuguesa. Foi interessante deparar-me com estas canções e perceber que muita da música, seja ela pop ou independente, ainda vai buscar muitas referências ao compositor, em particular ao Por Este Rio Acima. Ainda que existam alguns exemplos de canções que estão mais fixadas no tempo, a maioria dos temas do Fausto sobrevive e continua a fazer muito sentido. Ouvir o Por Este Rio Acima é uma experiência fascinante. É bastante diferente de tudo aquilo que era feito na época. A atenção ao detalhe torna-o completamente ímpar. É feito de elementos de música tradicional, mas também de sons contemporâneos que ainda hoje são ouvidos na música indie e que se misturam de uma forma fluída”.

Também parte de uma geração bem mais nova do que Fausto, Luís Severo, talvez um dos herdeiros mais óbvios do cantor e compositor que morreu aos 75 anos, admite uma “relação de encantamento com o Fausto”. “Há uma sensação muito mágica quando se ouve o Por Este Rio Acima. Tive a sorte de assistir a dois espetáculos dele. O Três Cantos, que aconteceu em 2009, no Campo Pequeno, juntou ainda o Sérgio Godinho e o José Mário Branco. Vi-o duas vezes, a primeira com a minha mãe e depois com amigos. Foi uma experiência fantástica e hoje tem um peso ainda maior porque dois deles já não estão vivos. Também o vi em 2010, no Bons Sons, em Cem Soldos, quando tinha 18 anos. Foi uma atuação muito forte, porque tive a oportunidade de o ver num ambiente que não era um anfiteatro, onde tinha de estar sentado. Estava na primeira fila e havia mais liberdade para desfrutar. Foi de facto muito intenso”

Na obra de Fausto Bordalo Dias, Luís Severo encontra uma “musicalidade muito própria”. “É muito identificável. Há muita coisa que me espanta no sentido técnico: a composição, a harmonia, os acordes, por exemplo. Toda a obra de Fausto vem de um mundo mágico, sem medo de falar sobre muitos assuntos, muitos deles que ainda hoje nos interrogam. Já li algumas comparações entre o trabalho do Fausto e o meu. Pessoalmente, não o considero uma inspiração tão forte, porque, se quisesse fazer as coisas como ele, teria de ter um conhecimento que não possuo. É um trabalho muito denso, de forma positiva. Se alguma vez me pedissem para fazer uma música como a do Fausto, não seria capaz. Gosto de beber das suas influências, mas para o poder fazer de uma forma mais intensa, teria de ter outra escola técnica que não tenho.”

“Perder o Fausto é uma perda monumental para a música portuguesa”, confessa-nos Benjamim. O músico reconhece mesmo que “é como perder o Zeca Afonso ou o Sérgio Godinho”. “É um dos maiores escritores da língua portuguesa. Marcou gerações e a maneira como a música portuguesa existe hoje em dia. Esta notícia surge na sequência de um dia triste para a democracia, em que a extrema-direita em França ganhou as eleições. Perder assim uma pessoa que sempre se bateu por valores de liberdade e que foi um ícone da nossa resistência antifascista é muito triste. Vai ser impossível deixar de sentir a sua influência. Ele deixou uma marca gigante em toda a música portuguesa. No meu primeiro álbum, Auto Rádio [2015], tenho uma versão de uma canção que ele escreveu com um amigo meu, o A. P. Braga, em 1973, que é uma canção que adoro, Rosie, que tem a letra do Reinaldo Ferreira. Portanto, o Fausto está intimamente ligado à minha música, principalmente desde que comecei a escrever em português e passei a assinar como Benjamim. A única versão que alguma vez gravei em álbum foi esta canção.”

“Hoje é um dia de reflexão e de olhar para trás, para alguém que nos deixou uma obra gigante, que vai continuar a inspirar muitas pessoas e muitos novos artistas”, começa por dizer Pedro Mafama, que também tem uma ligação particular com a obra de Fausto. “As suas músicas tem uma modernidade e uma atualidade inquestionáveis, nomeadamente, pela forma como salta entre géneros, com um olhar muito específico, mas sem uma forma musical restrita. É, sem dúvida, um trabalho que vai gerar muitos outros trabalhos, que vai gerar muitos novos olhares e que vai gerar muita conversa, e que fica como um exemplo de escala e de grandeza que poucos trabalhos conseguem ter. Um obrigado ao Fausto”, diz o artista que no seu álbum de estreia o evocou, dando-lhe o título Por Este Rio Abaixo.

Foi, de resto, precisamente esse disco que viria a marcar de forma indelével a cantora Ana Lua Caiano. : “O Fausto foi uma das minhas grandes influências. Foi alguém que ouvi muito enquanto estava a crescer, principalmente o álbum Por Este Rio Acima, um trabalho que ainda gosto de revisitar. Ele era um artista que admirava muito. Foi capaz de pegar na música tradicional que conhecemos e torná-la dele. Isto pode parecer algo simples, mas não era. Isto percebe-se pela forma como conseguia criar canções e letras a partir de outros textos. Para mim, é um artista incontornável e que está muito presente na minha vida e nos meus trabalhos. É com uma pena enorme saber que não estará mais entre nós e que não nos poderá brindar com mais concertos. Felizmente, consegui vê-lo ao vivo em diversas situações. A última, em 2022, na Aula Magna, onde foi tocado na íntegra o Por Este Rio Acima, foi um concerto muito forte. Estavam presentes membros de uma nova geração que também está a trabalhar este estilo de música portuguesa. Foi bonito ver este cruzamento de pessoas e poder ouvir e experienciar as músicas desta pessoa que tanto nos inspirou. Nunca conheci o Fausto, mas felizmente fiz parte do público e consegui apreciar este momento especial.”

“Fiquei muito triste com a noticia”, revela a fadista Gisela João. “O Fausto foi dos compositores que mais me inspirou. É dele um dos meus discos preferidos. O Por Este Rio Acima desde muito cedo me comoveu. Ensinou-me a olhar para a historia e a liberdade com novos olhos. Num ano em que se celebra os 50 anos do 25 de Abril esta é uma perda que se sente ainda mais forte”, remata.

Para a cantora Rita Vian, também “foi uma grande tristeza saber da morte de Fausto Bordalo Dias”. “Para além de ser um dia muito triste para a cultura portuguesa, é também um dia que nos faz pensar um pouco naquilo que fazemos e nas palavras que ficam. Para mim, acima de tudo, fica a canção que mais vezes cantei deste artista, Lembra-me um Sonho Lindo. Acho que vou ficar nesta canção durante uns bons tempos. Todo o trabalho que ele nos deixou é um sonho lindo e é um sonho que ficará para sempre vivo e que será mais forte do que qualquer realidade”, conclui.

Numa altura em que se multiplicam os testemunhos e homenagens ao cantor, António Zambujo escolhe destacar precisamente esse caráter de reconhecido consenso. “O Fausto é um daqueles casos que, apesar de não me parecer que seja uma coisa que o preocupasse muito, gera unanimidade. É um dos maiores marcos da história da música portuguesa e estava no mesmo patamar de outros imortais como o Zeca Afonso, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Jorge Palma, o Rui Veloso ou o Vitorino”, diz. “Esta perda é uma pena muito grande. Vamos deixar de ter acesso à sua veia criativa, a novas músicas e outras ideias. Apesar de não ter sido uma influência direta, a sua música sempre serviu como uma inspiração involuntária. Identifico-me com a sua ligação à música tradicional, nomeadamente, à exploração dos ritmos e instrumentos portugueses, por exemplo, com a utilização de Bombos de Lavacolhos nos seus concertos, mas também com toda a parte musical, da riquíssima criatividade e da parte escrita”, afirma.