Além de se ter tornado muito escasso, tal como a maioria dos géneros cinematográficos tradicionais, o western foi contaminado pela agenda ideológica vigente, que gerou westerns “desconstruídos”, subvertidos, feministas ou anacrónicos. Isto além daqueles que, respeitando mais ou menos a sua integridade, são pura e simplesmente maus. Kevin Costner tem uma relação antiga e significativa com o género, no cinema, na televisão e no streaming, quer como ator (Silverado e Wyatt Earp, de Lawrence Kasdan, as séries Hatfields & McCoys e Yellowstone – esta contemporânea), quer como realizador (Danças com Lobos, Open Range-A Céu Aberto). Horizon: Uma Saga Americana, composto por quatro filmes, representa o culminar dessa relação e da sua paixão de longa data pelo western.

Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo 1 é o filme que lança este projeto ambicioso (e comercialmente muito arriscado, já que além de serem quatro, as fitas têm cerca de três horas de duração cada uma), que Kevin Costner acalenta desde finais dos anos 80. Esteve para ser feito com a Disney, mas o ator e realizador acabou por o financiar em boa parte do seu bolso, recorrendo também a investidores privados. E fica claro que ele pretende que este quarteto de westerns faça uma ponte com a tradição do género, na forma e na essência, no tipo de narrativa e na identidade visual, e no tratamento da mitologia mas também dos factos históricos que o escoram, e lhe dê fôlego renovado e continuidade.

[Veja o “trailer” de ‘Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo I’:]

Kevin Costner concretiza esta intenção sem a má consciência masoquista e derrotista do western revisionista, mas também sem escamotear os aspetos menos edificantes da “conquista do Oeste”. Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo 1 celebra o sacrifício, a coragem e a fortaleza dos pioneiros e dos colonos, e o seu espírito de aventura, mostrando ao mesmo tempo o custo da expansão para Oeste sobre as tribos indígenas, que tanto podiam ser nobres e pacíficas como implacáveis e cruéis, entre elas e para com os brancos (o massacre pelos apaches dos colonos que começam a erigir a cidade de Horizon do título, valeu a Costner acusações – injustas e estúpidas – de “racismo” e “insensibilidade étnica” por parte de alguma crítica americana).

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No início da fita, o coronel de cavalaria interpretado por Danny Huston faz um pequeno discurso ao tenente novato de Sam Worthington, em que sintetiza a complexidade e a inevitabilidade da situação que será desenvolvida pelo enredo. Os colonos, enganados ou não por quem lhes vendeu as terras, continuarão a vir em grande número de Leste, e da Europa, para os territórios inexplorados e ainda não povoados da nova fronteira; os índios dividir-se-ão entre combatê-los de forma brutal ou tentar a coabitação com eles, mas estão condenados a ser vencidos e deslocados. Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo 1 combina o heróico e o realista, leva a lenda do Oeste por uma mão, e a sua história pela outra, conseguindo harmonizá-las.

[Veja uma entrevista com Kevin Costner:]

Passado antes, durante e pouco depois da Guerra Civil, referida de passagem por algumas das personagens e assinalada pela presença em segundo plano de alguns negros fugidos à escravatura no Sul e que também rumaram a Oeste, o filme tem uma história “coral” e atarefadamente romanesca, com três pontos geográficos de referência, Arizona, Wyoming e Kansas, contemplando uma ampla galeria de personagens masculinas e femininas, entre amigos e inimigos, amantes, rivais e famílias, que se interligam ou que virão a relacionar-se nos próximos filmes, que definem outras tantas linhas narrativas de Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo 1 e vão convergir para uma história comum e coletiva. 

[Veja uma entrevista com Sienna Miller e Sam Worthington:]

Além dos militares (há um sargento muito “fordiano”, interpretado por Michael Rooker) e dos apaches conciliadores ou hostis representando três gerações (personificados por atores nativos americanos, seguindo o exemplo dado por John Ford), temos ainda Hayes Ellison, o cowboy individualista e veterano de Kevin Costner; a estóica Frances Kitterige (Siena Miller), que perdeu o marido e o filho mais novo às mãos dos apaches e ficou só com a filha mais velha; os vários membros da caravana liderada por Matthew (Luke Wilson); Marigold (Abbey Lee); a jovem prostituta que e junta a Hayes; e os brutais caçadores de escalpes e os cruéis e vingativos membros da família Sykes, entre outros secundários ou comparsas.

[Veja imagens do início da rodagem:]

A cidade de Horizon, apenas um aglomerado de tendas neste primeiro filme (e cuja génese é mostrada logo no início, com a chegada da primeira família de colonos, que tem um destino trágico), vai desenvolver-se e funcionar como o centro agregador das personagens e cenário de muita da ação da saga, e ser ao mesmo tempo um microcosmo da experiência da colonização do Oeste, e do trágico choque com as populações nativas. E Costner faz em  Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo I um grande concentrado de situações, personagens-tipo, emoções específicas e marcas visuais do western, que alguns tomaram por um conjunto de estereótipos. Mas que são na verdade uma forma de se referir à herança formal, de narração e cinematográfica do género, e a invocar para o seu filme.

Houve também quem lhe reprovasse o não ter rodado Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo I em scope, e dito que o filme parece uma série de televisão ou streaming em cinema. Mas quantas obras-primas do western não foram filmadas em ecrã largo? E porque não aplicar a ideia da série do pequeno ecrã ao grande, amplificando-a? E não faz sentido dizer que há pouco ou nenhum cinema na fita. Basta ver a longa e tremenda sequência do ataque noturno dos apaches a Horizon, a fuga do miúdo, perseguido pelos índios, e que leva dois cavalos, mudando de montada a certa altura sem sequer parar, enquanto o dia nasce no horizonte; ou ainda o ataque dos caçadores de escalpes à aldeia apache, com as suas constantes mudanças de ponto de vista.

[Veja uma sequência do filme:]

Não falta a Costner olhar cinematográfico (mesmo no seu catastrófico The Postman: O Mensageiro, ele está lá) e o realizador e ator mostra aqui de novo a apetência visual que tem para o western, as suas paisagens, as suas figuras representativas e as suas possibilidades épicas. Em Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo I, Costner acena a Ford, Hawks, Mann e Walsh, tal como a Clint Eastwood, ao Robert Aldrich de Ulzana, o Perseguido e ao Sydney Pollack de Caçadores de Escalpes, mas mantendo um modo de estar no género reconhecidamente pessoal, quer no gesto, quer no discurso. Horizon: Uma Saga Americana-Capítulo 2 estreia já em Agosto e esperemos que mantenha, aprofunde e amplie as qualidades deste primeiro. Tudo pelo western, nada contra o western!