A redução do rácio de dívida pública em 2023, para menos de 100% do PIB, foi conseguida em parte de forma “artificial”, reiterou nesta quarta-feira o coordenador da UTAO em audição parlamentar. Embora reconheça que talvez pudesse ter explicado melhor o significado da expressão “artificial”, e o sentido que lhe quis dar, Rui Baleiras afirmou que “mantém aquilo que está escrito” na análise que está no polémico relatório publicado a 10 de abril.
“Eu mantenho que é artificial a redução da dívida, na parte que é justificada pela compra de títulos por parte de entidades públicas que podem ser comercializadas em mercado secundário”, afirmou Rui Baleiras, mostrando-se surpreendido pelo “barulho” que essa análise causou e o “empolamento político” que diz ter sido feito do relatório e da expressão “artificial”.
O momento mais marcante desse “barulho” político foi a audição de Fernando Medina, ex-ministro das Finanças, a 14 de maio. Nessa audição, Medina fez críticas muito violentas à Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) e ao seu líder, acusando-os de “profunda ignorância”, entre outras considerações. Para o Chega, partido que convocou a audição a Rui Baleiras, as críticas de Medina colocaram em causa “o bom nome” de Rui Baleiras e da própria UTAO.
Medina. “Perfeitamente normal” pedir dinheiro a empresas públicas para pôr a dívida abaixo de 100%
“Devo dizer que não é com prazer que venho a esta comissão”, afirmou Rui Baleiras, logo no início da audição. “Eu sempre pretendi manter a minha pessoa e a entidade fora da luta política” e, por isso, “é penoso para mim estar aqui a censurar o comportamento do senhor deputado Fernando Medina, que conheço há muitos anos”, afirmou o responsável, considerando que muitas das críticas de Medina se baseiam nas suas próprias “inferências” e não têm fundamento no que está escrito no relatório.
Cerca de 86% da redução da dívida pública foi com compras de dívida por entidades públicas, diz Baleiras
A análise da UTAO, logo desde o início, nasceu da “curiosidade” de Baleiras, “estruturalmente um académico”, que teve conhecimento de “sinais” e “rumores” de que o Governo estaria a fazer todos os possíveis para reduzir a dívida para menos de 100% do PIB mais rapidamente – um objetivo que, sublinhou Baleiras, é “legítimo”. Intrigado pelas ferramentas que o Estado iria usar para essa iniciativa, Baleiras diz que procurou obter informação possível (incluindo informação que não é do domínio público).
Da sua análise, concluiu que quase toda a redução da dívida em 2023 foi obtida graças à compra de títulos por entidades públicas, que aumentou significativamente em relação ao ano anterior. O rácio da dívida pública fixou-se em 99,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023 e em termos nominais diminuiu 9,3 mil milhões de euros face ao ano anterior, para 263,1 mil milhões de euros.
“Há uma parte importante da descida do stock da dívida em 2023 que se deve a um aumento significativo da compra de títulos (Bilhetes do Tesouro e Obrigações do Tesouro)”, afirmou Rui Baleiras, acrescentando que “essas compras líquidas de BT e OT por parte de entidades públicas aumentaram em 8.003 milhões de euros, um acréscimo de 52% face às compras líquidas no ano anterior”.
“A dívida consolidada de Maastricht caiu mais de 9.300 milhões, em que cerca de 8 mil milhões de euros. Estamos a falar de 86% da queda” foi obtida por essa via, explica Rui Baleiras.
E porque é que usou a expressão “artificial”? Rui Baleiras deu um exemplo hipotético: “Imagine que temos um Estado que precisa de comprar 100 unidades monetárias de um bem qualquer, vai ao mercado e pede 100 emprestados para pagar aquela despesa. E fica a responsabilidade para os contribuintes. Não falámos de quem comprou a dívida: podia ser uma empresa pública desse país a comprar. Não há nada de mal com isso. Mas é dívida. E se a 31 de dezembro essa entidade das administrações públicas tinha as OT [Obrigações do Tesouro] mas no dia 1 de janeiro as vende no mercado secundário, não deixa de ser dívida. Foi nesse sentido que usei a expressão artificial”.
Eu acho que o adjetivo se justifica no contexto delimitado que eu aqui referi. Não é a redução da dívida toda, em 2023, que é artificial”, disse Rui Baleiras
“Eu mantenho que é artificial a redução da dívida justificada pela compra de títulos por parte de entidades públicas que podem ser comercializadas em mercado secundário”, diz Rui Baleiras. Porém, “tendo havido a reação que houve nos últimos meses, se pudesse voltar atrás teria lá escrito aquilo que aqui expliquei”.
Instruções “legítimas” a empresas públicas, pensões que não ficam por pagar e uma correção ao ex-secretário de Estado
Sobre “instruções” dadas pelo Governo para que empresas públicas comprassem dívida, Rui Baleiras não quis ir para esse campo. “É evidente que eu não sou um pássaro que entra e está nas reuniões entre a tutela e as equipas de gestão (das empresas públicas)”, diz Rui Baleiras, repetindo que “não vê mal algum nisso”.
Não me pronuncio nem quero entrar nesse campeonato. Acho legítimo, há uma relação de tutela e depois o Governo responde”.
Outra componente da redução da dívida está relacionada com os investimentos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). “Eu não posso afirmar que houve desvio de responsabilidades da Segurança Social para pagar pensões. Sei que isso foi referido nos jornais e na discussão política mas isso não está no relatório da UTAO”, sublinhou Rui Baleiras, questionado sobre essa matéria sobre os deputados.
O líder da UTAO frisou que “não se deixou de pagar no ano de 2023 nem em anos futuros, pelo facto de excedentes de receita fiscal consignada terem sido aplicadas em dívida pública”.
Perto do final da audição, Rui Baleiras ouviu António Mendonça Mendes, deputado do PS e ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a dizer que tem muito “respeito” pela UTAO, muito embora sempre tenha lido os seus relatórios e apesar de a UTAO “ter falhado sempre nas suas previsões orçamentais“.
Ora, a correção não se fez esperar, gerando um enorme burburinho na sala de audiências. Assim que tomou a palavra, Rui Baleiras corrigiu Mendonça Mendes, agradecendo a atenção com que diz sempre ter lido os relatórios da UTAO mas corrigindo: “a UTAO não faz projeções orçamentais, deve estar a referir-se ao CFP [o Conselho das Finanças Públicas]“.