A Conferência Episcopal Portuguesa divulgou esta quinta-feira o regulamento completo que explica o mecanismo de atribuição de compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais ocorridos no contexto da Igreja Católica. As novidades incluem a revelação de que duas comissões vão ser responsáveis por analisar cada caso e por decidir o montante a atribuir a cada pessoa, bem como os critérios detalhados a seguir neste processo. Neste momento já há 43 pedidos de compensação, confirmou a psicóloga Rute Agulhas ao Observador — e as solicitações deverão continuar a chegar até dezembro.

O documento de nove páginas e 38 pontos (que pode ler na íntegra aqui) pretende explicar os procedimentos e os critérios que levarão à atribuição de uma compensação que, de acordo com uma nota explicativa enviada pelos bispos, “não tem como objetivo pagar o que é impagável ou anular o que, lamentavelmente, não pode ser anulado a quem sofreu tão dura vivência“.

“Deverá corresponder a um benefício significativo (não meramente simbólico) e proporcional à gravidade do dano“, diz ainda a nota. “Corresponde a um dever de solidariedade para com as vítimas, que viram traída a confiança que depositavam em membros da Igreja e nesta como instituição.”

Tal como já se sabia, os pedidos de compensação financeira devem ser apresentados ao Grupo VITA (o grupo de trabalho liderado pela psicóloga Rute Agulhas criado para conduzir o processo de acompanhamento das vítimas na Igreja) ou então diretamente à Igreja Católica: às comissões diocesanas de proteção de menores (se o caso tiver ocorrido no contexto de uma diocese) ou à respetiva ordem/congregação (se o caso tiver ocorrido no contexto do clero religioso).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Como o Observador já tinha escrito antes, este mecanismo diz, primariamente, respeito aos casos ocorridos no passado e denunciados no contexto dos esforços recentes da Igreja Católica no sentido de debelar este problema — desde a comissão independente de 2021 até hoje. Por isso, estes pedidos formais devem ser apresentados até ao dia 31 de dezembro deste ano.

“Caso existam pedidos após este período serão tratados à luz do procedimento que a Conferência Episcopal Portuguesa, os Institutos Religiosos e as Sociedades de Vida Apostólica estabeleçam como mais conveniente”, diz a Conferência Episcopal.

Valores caso a caso, pedidos até dezembro e um fundo da Igreja. Nove perguntas e respostas sobre a compensação às vítimas de abusos

De acordo com o regulamento, os pedidos devem ser formulados com um conjunto de dados: “1) nome, e-mail e contacto telefónico do denunciante; 2) nome da pessoa agressora, funções e local onde as exercia/exerce; 3) data aproximada, e local da prática dos factos; 4) idade aproximada da vítima à data dos factos; 5) descrição sucinta dos factos; 6) entidades a quem a situação foi denunciada/reportada; 7) decisões tomadas, se tiver sido o caso.”

No início do regulamento, o documento começa por explicar que o “dever de solidariedade”, cabendo antes de mais ao agressor, “poderá coincidir, nalguns casos, com uma diferente responsabilidade moral e jurídica, se na prática dos abusos sexuais existirem situações de negligência grave, de omissão do dever objetivo de cuidado e de vigilância, de encobrimento ou favorecimento pessoal dos seus prevaricadores”.

Duas comissões vão analisar casos

As novidades do regulamento prendem-se sobretudo com o que acontece depois de ser recebido um pedido. Sabe-se agora que há duas comissões que vão estar envolvidas: uma Comissão de Instrução e uma Comissão de Fixação da Compensação.

A Comissão de Instrução será nomeada especificamente para cada caso e será composta por, pelo menos, duas pessoas. Uma será “designada pelo Grupo VITA, se possível um profissional da área da psicologia forense ou da psiquiatria forense com experiência em avaliações médico-legais”; a outra será “designada pelo Coordenador da Comissão Diocesana onde a pessoa agressora exercia regularmente funções ou, no caso dos Institutos Religiosos ou Sociedades de Vida Apostólica, designada pela autoridade competente do Instituto, de preferência um jurista”.

O regulamento traz ainda um conjunto de critérios de admissibilidade dos casos, uma vez que “a atribuição das compensações financeiras dependerá do reconhecimento da prática do abuso, da extensão dos danos e do nexo de causalidade entre os factos abusivos e os danos”.

“O reconhecimento da prática do abuso baseia-se nas declarações da vítima, submetida a uma avaliação de foro psicológico, bem como noutros elementos que venham a ser recolhidos”, lê-se no regulamento.

O documento especifica ainda, no artigo 15, que o pedido de compensação financeira junto da Igreja Católica não é incompatível com a existência de um processo judicial junto dos tribunais civis ou canónicos. Aliás, mesmo que tenha existido um processo e tenha acabado arquivado por falta de provas ou por prescrição, o pedido de compensação não está impedido, se existirem provas (ou novas provas, no caso do arquivamento por falta de provas).

A morte do alegado agressor, a sua recusa em confessar os abusos ou a sua incapacidade de pagar uma indemnização não impedem o pedido de compensação junto da Igreja, especifica ainda o regulamento.

“Para a fixação dos factos, levar-se-ão a cabo as diligências reputadas por necessárias, devendo sempre que possível proceder-se ao aproveitamento das já realizadas e que se encontrem documentadas, evitando-se a repetição de diligências desnecessárias”, diz o regulamento.

Desta investigação resulta um “parecer final que reconhecerá, ou não, a probabilidade de prática do abuso, pronunciando-se sobre a atribuição de compensação financeira”.

No entanto, para determinar o montante da compensação a atribuir a cada caso, este parecer passa para uma nova entidade: a Comissão de Fixação da Compensação, que será composta por sete pessoas, “maioritariamente juristas, com experiência na área em causa“. Duas serão indicadas pela Conferência Episcopal, duas serão indicadas pela coordenação nacional das comissões diocesanas de proteção de menores, uma será indicada pela Conferência dos Institutos Religiosos e duas serão indicadas pelo Grupo VITA.

O regulamento inclui um ponto — o artigo 34 — com uma extensa lista de critérios a que será necessário atender na definição dos montantes, incluindo o “tipo de abusos sexuais concretamente praticados”, a “duração e frequência”, a “idade da pessoa em causa no momento do abuso”, a idade do agressor, as “estratégias utilizadas pela pessoa agressora”, a “natureza da relação” entre vítima e agressor, o “grau de vulnerabilidade da vítima”, o número de agressores, o local do abuso, a reação negativa do meio familiar, social ou da Igreja, o “nexo de causalidade entre o abuso e os danos evidenciados” e ainda os “custos verificáveis” de tratamentos médicos e psicológicos relacionados com o abuso.

“O montante da compensação terá em conta aquilo que no âmbito da responsabilidade civil é fixado na jurisprudência dos tribunais portugueses, a título de compensação pelos danos não patrimoniais. Serão consideradas, também, as indemnizações eventualmente já atribuídas à vítima pelos tribunais, bem como outras quantias que tenham sido acordadas e recebidas a título extrajudicial”, explica a nota dos bispos.

O documento especifica ainda que “os pareceres emitidos quer pela Comissão de Instrução, quer pela Comissão de Fixação da Compensação deverão ser apresentados, devidamente fundamentados e sob sigilo, à Conferência Episcopal Portuguesa ou ao/à Superior/a Maior competente, que, respetivamente, sobre eles decidirá em termos definitivos”.

Se for decidido atribuir um montante a uma vítima, o pagamento “será feito pela Conferência Episcopal Portuguesa, através de um fundo criado para o efeito, que contará com o contributo solidário de todas as Dioceses portuguesas, assim como dos Institutos Religiosos e das Sociedades de Vida Apostólica”. A atribuição ou não atribuição da compensação financeira não impede que a vítima continue a ser acompanhada pelas estruturas do Grupo VITA. O que não existe, para já, é qualquer indicação de qual a ordem de grandeza expectável deste fundo — nem qual a ordem de grandeza das compensações.

Já há 43 pedidos de compensação

A psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do Grupo VITA, confirmou esta quinta-feira ao Observador que, até agora, já chegaram 43 pedidos de compensação financeira por parte de vítimas de abusos sexuais. Trata-se de mais quatro pedidos ocorridos no último mês (em meados de junho, quando o Grupo VITA apresentou o seu relatório anual, eram 39 os pedidos).

O mecanismo anunciado em abril pela Igreja Católica para atribuir compensações financeiras às vítimas de abusos não é, contudo, unânime.

Recentemente, a associação Coração Silenciado, que reúne vários sobreviventes de abusos sexuais no contexto da Igreja, emitiu um comunicado a manifestar a sua “divergência” relativamente ao método encontrado para compensar as vítimas, apesar de reconhecer o progresso feito pela Igreja no acompanhamento desta realidade.

“Contestámos abertamente a avaliação ‘caso a caso’. É para nós uma questão de humanização e não uma questão burocrática ou de cálculos profissionais da ‘qualidade’ dos traumas”, disse a associação. “É preciso evitar, de uma vez por todas, a revitimização dos sobreviventes, o ‘remexer nas memórias’, pois o processo, como neste momento está estabelecido, determina que cada sobrevivente tenha de redigir uma carta a indicar, de forma sucinta, o abuso que sofreu, quando isso já consta no processo de denúncia.”

“Ao termos de justificar à nova comissão, criada para avaliar o impacto que o abuso teve nas nossas vidas, seremos então mais um número sem rosto, sujeitos a uma ‘tabela de preços’ do sofrimento”, critica a associação.

“Se o princípio é ‘amai-vos uns aos outros’ em vez de ‘amai-vos uns aos outros, mas mais uns do que outros’, isso determinaria um tratamento igualitário para com todas as vítimas. Seria então um processo mais humanizante e, certamente do ponto de vista da própria Igreja, mais cristão“, considerou.

A associação lamentou também que tenham sido destruídos os dados pessoais recolhidos pela Comissão Independente, que podiam agora ser usados para este trabalho.

“Entretanto, foi-nos confirmado que do Relatório da CI, foram extraídos e destruídos todos os dados pessoais, pelo que não será possível alguém dizer: ‘dei o meu testemunho à CI, o meu nome é fulano/a, autorizo que recolham do Relatório da CI aquilo que contei'”, diz a associação Coração Silenciado. “É frustrante sabermos que todo o trabalho da CI não tinha como objectivo ajudar e acompanhar as vítimas, mas tão somente recolher dados/testemunhos para conhecimento da realidade pretérita e para estatística.”

A associação pediu também que os bispos portugueses levassem a cabo uma campanha de comunicação ativa relativamente ao mecanismo das compensações, “informando, de forma simples e clara, de que Igreja Católica está pronta para as compensações financeiras, indicando endereço central de email e números de telefone, para que ninguém, que pretenda ser compensado, fique de fora”.