James Baldwin foi homem de esmiuçar a vida. Já se sabe do romancista completo, incisivo, que foi, tendo escrito romances como O quarto de Giovanni ou Se esta rua falasse. Além disso, notabilizou-se como ensaísta, e tanto Da próxima vez, o fogo como Filhos da Terra o mostram como crítico social acordado para a vida. Em vez de repetir, Baldwin acrescenta. Em vez de resumir, ordena os pontos.

É o segundo livro de ensaios com assinatura do autor que é publicado em Portugal, com selo da Alfaguara, seguindo-se a Da próxima vez, o fogo, um manifesto em prol da igualdade – mas tanto mais do que um manifesto. É que Baldwin analisa para concluir em vez de concluir para convencer. Ao desenhar o seu raciocínio, atando pontos geográficos ou temporais, sugere não só um curso da história, mas também uma parte que tem ficado escondida. E também essa ocultação é tratada, analisada e explicada.

Destaca-se, nesta colecção, um olhar que foge ao panfleto. Seria fácil, pegando principalmente em questões raciais, enveredar pelo caminho da palavra de ordem, do activismo, do maniqueísmo simples. Em vez disso, há uma luz que extrapola o debate enquanto mera troca de argumentos. Há um fio condutor que entrelaça os eventos históricos de forma orgânica, uma narrativa criada olhando-se para a história de forma panorâmica. E, nisto, surge, em simultâneo, a sociedade e o indivíduo – um explica o outro, outro explica um, e os Estados Unidos aparecem como território excludente de quem o compõe.

Aliás, o conjunto de ensaios parte até da vida de Baldwin, incluindo leituras feitas, e ainda o momento em que se apercebeu de que as referências culturais que o rodeavam estavam distantes da sua herança cultural. À época em que foram escritos, entre os anos 1940 e os 1950, Baldwin andava na casa dos 20, e floresciam no país movimentos de direitos civis, e questionavam-se então os embriões e os baluartes do racismo. Ao pegar na condição individual de um homem negro nos Estados Unidos, o autor retrata ainda um país, não faltando uma explicação sobre as estruturas racistas que nem chega a ser condenação – é mesmo compreensão. Ora, é por procurar essa compreensão, ao invés de fazer meramente o balizamento moral, que Baldwin consegue ir muito além do panfleto – e, com isso, garante muita mais eficácia do que se fosse pelo caminho mais fácil, mais maniqueísta, mais a apelar à bondade e ao sentimento.

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Título: “Notas de um filho da terra”
Autor: James Baldwin
Editora: Alfaguara
Tradução: Pedro Rapoula
Páginas: 208

Aqui e ali, o tom do livro é agressivo, o que inclui os momentos em que o autor critica o romance A Cabana do Tio Tom (1852), de Harriet Beecher Stowe. Os seus argumentos, por válidos que sejam (por exemplo, dizer que as mudanças na protagonista em relação à violência encaixam nos estereótipos negativos dos brancos sobre os negros, ao mesmo tempo que tenta amaciar a leitura dos segundos), acabam por parecer desfasados nos momentos em que o autor parece esquecer que o romance que critica também está desfasado da linha temporal então actual. Leia-se:

(…) é ativada por aquilo a que se poderia chamar um terror teológico, o terror da condenação; e o espírito que se respira neste livro – quente, moralista, temeroso – em nada difere do espírito medieval que procurava exorcizar o mal queimando bruxas; e em nada difere daquele terror que estimula uma multidão de linchadores.” (p. 40)

A verdade é que, publicado em meados do século XIX, não havia como o analisar sem se contar com o anacronismo evidente. Assim, se a análise já poderia soar desfasada na altura em que foi escrita, quanto mais agora. Ora, o tom agressivo não é coisa de somenos, uma vez que o autor também se debruça sobre a forma como a zanga dita o curso das acções – e como nasce a partir de um tratamento injusto. Nisto, surge ainda uma nova discussão, sobre a ideia de literatura de protesto: no entender do autor, a literatura escrita para um público branco será necessariamente menos pungente do que a literatura escrita por autores negros, uma vez que será forçosamente menos directa e capaz de confrontar do que a outra, que, para além de mais honesta, terá de ser mais agressiva. Além disso, advoga que a simples ideia do romance de protesto é, para além de incapaz de perturbar, um “aspeto aceite e reconfortante da cena americana, ramificando o quadro que acreditamos ser tão necessário” — ora, o que aparenta ser um caminho para uma coisa chega, afinal, a outra conclusão, com o autor a dizer que não cabe à ficção a função de ser política. Além disso, a ideia das categorias quase estanques, e forçosamente maniqueístas, que teria de alicerçar o romance de protesto condená-lo-ia sem dúvida ao fracasso:

O fracasso do romance de protesto reside na sua rejeição da vida, do ser humano, na negação da sua beleza, do seu pavor, do seu poder, na sua insistência em que apenas a sua categorização é real e não se pode transcender.” (p. 45/46)

A prosa é envolvente, abraçando o leitor, em ímpetos avante. James Baldwin tem um olhar transversal sobre as coisas, e a sua horizontalidade encanta. Ao invés de ver um episódio, vê séculos de acontecimentos. Ao invés de ver um indivíduo, tende a ver uma sociedade inteira. E, lendo-o, o leitor não apenas segue uma cabeça, com memórias e referências culturais, como reorganiza um quadro de entendimento da vida.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia