O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considera que a troca de informações entre os bancos sobre alterações futuras de spreads pode falsear a concorrência e, como tal, “uma troca de informações isolada entre concorrentes pode constituir uma restrição da concorrência por objeto”, segundo o acórdão, divulgado esta segunda-feira, 29 de julho, que traz a resposta para o pedido de interpretação que tinha sido feito há dois anos pelo Tribunal da Concorrência (Santarém). Se a troca de informações em relação ao spread pode, neste caso, configurar uma prática anticoncorrencial, o mesmo, segundo o tribunal europeu, pode não acontecer quanto à troca de informações sobre os volumes de produção. Ainda assim, a decisão do tribunal europeu dá força à eventual condenação em Portugal pelo designado cartel da banca.
A Autoridade da Concorrência faz leitura semelhante. Em comunicado realça que “este acórdão é um importante marco na interpretação do direito da concorrência, ao fazer
jurisprudência sobre a prática da infração de troca de informação sensível “standalone””, assumindo que cabe ao Tribunal nacional “decidir o processo em conformidade com a decisão do TJUE, aguardando-se sentença por parte do TCRS a qual, atenta a natureza urgente conferida ao
processo, deverá ser proferida brevemente”.
A deliberação do Tribunal europeu surge mais de dois anos depois de o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão ter dado como provado que os bancos tinham trocado informação sensível sobre condições comerciais, ao longo de mais de uma década (entre 2002 e 2013).
Considerando “impressivos” os e-mails trocados entre funcionários de vários bancos, a juíza Mariana Machado tinha, no entanto, pedido ao tribunal da União Europeia ajuda para esclarecer se houve restrição da concorrência – já que tinha dúvidas sobre se a prática poderia ser mesmo definida como elemento de infração à concorrência.
Na análise do TJUE, conhecida nesta segunda-feira, o TJUE afirma que troca de informação pode restringir a concorrência.
Em comunicado, o TJUE informa que, no seu entender, “uma troca de informações isolada” entre concorrentes “pode constituir uma restrição da concorrência por objeto”. “Basta que essa troca constitua uma forma de coordenação que, pela sua própria natureza, seja necessariamente, num contexto como aquele que envolve a troca, prejudicial ao correto e normal funcionamento da concorrência”, já que “para que um mercado funcione em condições normais, os operadores têm de determinar de forma autónoma a política que tencionam seguir e têm de permanecer na incerteza quanto aos comportamentos futuros dos outros participantes.”
Assim, diz o Tribunal, “uma troca de informações constitui uma forma de coordenação suscetível de ser qualificada de restrição por objeto quando permita eliminar essa incerteza. É o que sucede quando as informações trocadas forem confidenciais e estratégicas no sentido de que estas informações são suscetíveis de revelar o comportamento futuro de um concorrente nos mercados em causa”. O Tribunal europeu considera que isso pode estar em causa neste caso, já que “da descrição dos factos em causa efetuada pelo tribunal português parece resultar que as informações trocadas diziam nomeadamente respeito às intenções de alteração futura dos spreads dos participantes na troca” e uma vez que “os spreads constituem um dos parâmetros à luz dos quais a concorrência se estabelece num mercado, semelhante troca só poderá ter tido por objetivo falsear a concorrência.”
O acórdão acaba por decidir no sentido da pronúncia do advogado-geral deste mesmo tribunal. No seu parecer, que não vinculava o tribunal, o grego Athanasios Rantos considerava que as trocas de informação entre bancos, mesmo que referentes apenas ao spread, podem configurar restrições à concorrência – já que o spread é um elemento essencial do preço que é suportado pelo mutuário (o cliente que contrata o crédito).
Já a troca de informação entre os bancos sobre o volume de créditos concedidos, que também aconteceu, pode não ser uma ameaça à concorrência. Sendo o spread um elemento fundamental do preço, os bancos ao comunicarem entre si uma das componentes de preço “contribuíram para aumentar a transparência no mercado, reduzindo a incerteza ligada à sua estratégia atual ou futura, o que permitiu a cada um dos bancos participantes utilizar essa informação na definição da sua estratégia comercial e facilitar o alinhamento através de uma coordenação informal”. O que significa, no entender do advogado-geral, que “o conteúdo dessa troca apresenta, em si mesmo, suficiente grau de nocividade para a concorrência e pode ser considerado, pela sua própria natureza, prejudicial ao normal funcionamento da concorrência”.
Em causa está a acusação pela Autoridade da Concorrência (AdC) a 12 bancos de que violaram a lei da concorrência ao trocarem informação, tendo esse organismo condenado essas entidades ao pagamento de coimas de 225 milhões de euros. Os bancos recorreram dessa condenação, processo que corre desde então em tribunal e que, à medida que os anos passam, tem um risco de prescrição cada vez maior.
A própria juíza, quando pediu o parecer do TJUE, pediu uma resposta rápida e que se atribuísse “natureza urgente” à deliberação “por risco de prescrição” – isto apesar de a juíza determinado que os prazos de prescrição estariam suspensos enquanto o processo também estava suspenso à espera desta resposta. Pedido de urgência que o TJUE não concordou. E a resposta acabou por demorar cerca de dois anos a chegar.
O que diz a condenação da AdC
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A condenação da Autoridade da Concorrência refere, com base na análise dos factos comprovados, é “evidente” que os bancos “retiraram vantagens da prática em análise, permitindo-se, por esta via, reduzir a incerteza quanto ao modo como avaliam o funcionamento do mercado e quanto ao comportamento futuro das suas concorrentes, podendo ajustar as suas estratégias individuais em conformidade, e, como tal, alterar as condições concorrenciais no mercado e coordenar, deste modo, o seu comportamento no mercado, em seu exclusivo benefício e em detrimento não só dos seus concorrentes mas dos próprios consumidores”.
Aliás, sublinha a AdC, o próprio Santander, no âmbito da inquirição feita no processo, garantiu que “a informação trocada não tinha qualquer potencial colusório” mas “reconhece que permitia, nomeadamente, conhecer e monitorizar as estratégias dos concorrentes, reduzindo ou eliminando, assim, a incerteza e riscos comerciais, com custos para o consumidor”.
A Autoridade da Concorrência acusou 12 bancos de terem concertado posições durante mais de uma década, entre 2002 e 2013, sobre diferentes modalidades de crédito (habitação, consumo e empresas). A Caixa Geral de Depósitos (CGD) é o banco com a coima mais elevada, de 82 milhões de euros e a segunda multa mais elevada foi aplicada ao BCP, de 60 milhões de euros.
Apesar de a AdC não ter usado essa expressão, o caso ficou conhecido como o “cartel da banca”, designação que é rejeitada pelos bancos, que garantem que as trocas de informação nunca tiveram qualquer efeito prático de lesar os consumidores, direta ou indiretamente.
A AdC sustentou que “neste esquema, cada banco facultava aos demais, informação sensível sobre as suas ofertas comerciais, indicando, por exemplo, os ‘spreads’ a aplicar num futuro próximo no crédito à habitação ou os valores do crédito concedido no mês anterior, dados que, de outro modo, não seriam acessíveis aos concorrentes”.
Condenados, os bancos impugnaram e seguiram para o Tribunal da Concorrência. O processo está há cerca de dois anos, basicamente, suspenso, à espera deste acórdão. Agora, estarão reunidas as condições para que o julgamento prossiga e que haja uma decisão para o recurso que os bancos apresentaram, confrontados com a decisão condenatória da Autoridade da Concorrência.
Tribunal europeu vê diferentes entre partilha de informação sobre spreads e sobre volumes de produção. Decisão final nas mãos do Tribunal de Santarém.
“É ao tribunal português que compete proceder às apreciações factuais necessárias para determinar se a troca em causa constitui uma restrição por objeto”, realça o Tribunal de Justiça da União Europeia na sentença divulgada esta segunda-feira.
É nesta palavra por objeto que está o centro da pergunta prejudicial ao tribunal europeu. Já que uma associação entre empresas pode ser considerada prática concertada por objeto ou por efeito. Neste caso, a questão era o objeto. O próprio Tribunal recorda que “o conceito de restrição da concorrência por objeto deve ser interpretado de forma restritiva. Daqui decorre que, no caso de a análise de uma coordenação entre empresas não apresentar um grau suficiente de nocividade para a concorrência, há que examinar os seus efeitos e, para que a mesma possa ser objeto da proibição, exigir que estejam reunidos os elementos que demonstram a restrição da concorrência”.
Para o tribunal, mesmo num fator isolado, como é o caso do spread (que é um dos componentes de preço), pode haver prática considerada concertada. “O facto de o preço final incluir outros elementos que podem não ter sido (todos) objeto de uma troca de informações não é suscetível de pôr em causa a constatação de que existe uma restrição da concorrência por objeto”, diz o tribunal que ainda acrescenta que “o caráter estratégico e comercialmente sensível dos dados trocados não seria posto em causa, mesmo que se verificasse, como alegam vários recorrentes, que alguns dos intercâmbios em causa não diziam respeito aos preços finais praticados pelos bancos nem ao spread efetivamente concedido aos clientes, mas sim a um intervalo de taxas indicativas que eram utilizadas como pontos de partidas das negociações individuais com cada cliente em função do seu perfil de risco específico. Com efeito, a divulgação desses dados pode ser suficiente para revelar as intenções estratégicas sobre um comportamento futuro em matéria de preços e facilitar comportamentos colusivos entre as empresas concorrentes”.
O tribunal europeu diz, mesmo, ter dificuldade em aceitar o argumento dos bancos que a troca de informações era apenas “um meio informal para facilitar a atividade de benchmarking dos bancos que lhes permitia comparar entre si as respetivas ofertas, reduzindo os custos associados a esse exercício de comparação”, dizendo mesmo que até facilitava a concorrência. “Tenho dificuldade em seguir o raciocínio dos bancos quanto aos objetivos prosseguidos pela troca de informações em questão”, diz o acórdão.
Mas se a decisão em relação à troca de informação dos spreads é de que pode configurar restrições à concorrência, já em relação ao volume de produção, o Tribunal Europeu considera que, “embora não se exclua a possibilidade de o intercâmbio de dados recentes e desagregados sobre os volumes de produção ter caráter estratégico e ser sensível do ponto de vista do direito da concorrência, nomeadamente quando esse intercâmbio se efetua num mercado muito concentrado e quando a frequência dos intercâmbios é elevada, a decisão de reenvio não contém nenhum elemento que permita demonstrar claramente, como exige a interpretação restritiva do conceito de restrição por objeto, que esse intercâmbio tinha um caráter particularmente nocivo para a concorrência e que teria permitido (por si só) atenuar a incerteza estratégica quanto ao comportamento futuro dos participantes no mercado”.
Ora, a Autoridade da Concorrência, quando acusou os bancos, considerou que “cada banco facultava aos demais informação sensível sobre as suas ofertas comerciais, indicando, por exemplo, os spreads a aplicar num futuro próximo no crédito à habitação ou os valores do crédito concedido no mês anterior, dados que, de outro modo, não seriam acessíveis aos concorrentes. Assim, cada banco sabia, com particular detalhe, rigor e atualidade, as características da oferta dos outros bancos, o que desencorajava os bancos visados de oferecerem melhores condições aos clientes, eliminando a pressão concorrencial, benéfica para os consumidores”, segundo o comunicado então emitido.
Decisão pode dar força a processo de indemnizações de clientes
Em paralelo, o mesmo Tribunal da Concorrência aceitou no mês passado a quinta de cinco ações populares interpostas por uma associação de defesa do consumidor europeia, a Ius Omnibus, que reclama mais de 5.000 milhões de euros aos bancos, acusando-os de terem lesado milhões de clientes nos juros dos créditos.
Os bancos inicialmente em causa eram 14, mas como Banif e BES foram objeto de medidas de resolução, a ação é sobre 12 bancos.
Ainda assim, o valor exigido inclui danos feitos por BES e Banif porque considera a Ius Omnibus que a responsabilidade dos bancos é solidária. Os bancos em causa são Abanca, BBVA, BPI, BCP, Banco Santander Totta, Banif, Barclays Bank (cuja denúncia deu origem à investigação da AdC), Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, Montepio Geral, Deutsche Bank e Unión de Crédito Inmobiliarios. Os bancos dizem, em sua defesa, que os dados partilhados eram públicos, acessíveis a qualquer um e, até, poderão ter beneficiado os clientes, em vez de os prejudicar.
“Olá meu amigo, só para ti. Já falamos”
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A juíza Mariana Machado validou várias provas testemunhais de funcionários envolvidos nas trocas de informação entre os bancos. Em tribunal, demonstrou-se, até, que por vezes eram os chefes que davam instruções para que a informação sensível fosse transmitida.
Os trabalhadores contactavam os concorrentes por e-mail ou telefone e recebiam a grelha completa de spreads, que é diferente daquela que é a informação pública que aparece nos sites dos bancos, onde apenas se indicam os spreads mínimos e máximos aplicados.
“Olá, meu amigo, só para ti. Já falamos”, lia-se numa das mensagens eletrónicas trocadas entre funcionários de diferentes bancos, acompanhando-se isso com grelhas de spreads e de análises de risco.
A decisão dá força a um processo que, sendo independente, poderá sair reforçado por esta deliberação: a ação popular lançada por uma associação de defesa dos consumidores internacional chamada Ius Omnibus.
“Se essa decisão da Autoridade da Concorrência vier a ser confirmada, teremos uma presunção da prática do ilícito, o que facilitará em muito” a argumentação da Ius Omnibus, explica a secretária-geral Carolina Ramalho dos Santos, ao Observador. “Quanto mais consolidada na ordem jurídica ficar a existência daquela prática, mais força e mais facilidade irá a conferir ao nosso processo”, acrescenta.
Em comunicado, a Ius Omnibus, e após ser conhecida a decisão do tribunal europeu, considera que “o acórdão conhecido hoje [esta segunda-feira] confirma que a Autoridade da Concorrência (AdC) teve razão ao concluir que as trocas de informações entre os bancos portugueses durante 11 anos foram suscetíveis de restringir a concorrência e são proibidas pelo direito da concorrência”, acrescentando que “espera-se que o Tribunal da Concorrência confirme a decisão da AdC quanto à existência da infração”.
Outra associação, a AMPEMEP – Associação de Micro, Pequenas e Médias Empresas também avançou com um processo coletivo no tribunal de Santarém.
Ius Omnibus escreveu carta à CMVM a queixar-se do Santander
Apesar desta convicção da associação de defesa de consumidores, que quer reforçar em Portugal uma prática pouco vulgar no país que são as ações populares, os bancos mostram-se bastante tranquilos sobre o risco de virem a ter de pagar indemnizações.
O Santander Portugal, que foi condenado a pagar uma multa de 35 milhões (mais 600 mil euros pelo Banco Popular, que absorveu), escreveu no relatório e contas de 2023 que “é improvável a atribuição de indemnizações” no âmbito deste caso, porque, na leitura das suas equipas jurídicas, há uma “insuficiente demonstração de danos e do nexo causal”.
Outro banco, o Montepio, apresentou uma argumentação semelhante. “À luz de todas as circunstâncias que, ao caso, relevam, considera-se que as hipóteses de sucesso de eventuais ações judiciais eventualmente a serem propostas contra o Banco Montepio com fundamento na decisão a proferir seriam reduzidas”. O Montepio foi inicialmente condenado a 26 milhões de euros mas viu a multa reduzida para 13 milhões de euros devido a ter aderido ao programa de clemência.
A forma como o Santander se referiu aos processos na informação prestada aos acionistas, no Relatório e Contas de 2023, levou levou a Ius Omnibus a escrever uma carta ao presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Luís Laginha de Sousa, alertando para o que consideram ser informação (comunicada pelo banco ao mercado) que “não é completa, verdadeira, clara, objetiva e lícita”.
Entre outros pontos, a Ius Omnibus critica o facto de o Santander ter escrito que “decorre da própria decisão da AdC” que “não exist[em] quaisquer indícios da partilha de informação em causa ter tido impacto no mercado”. Ora, “verifica-se justamente o contrário”, acusa a Ius Omnibus, que cita a AdC quando esta sublinha que “resulta evidente que as visadas retiraram vantagens da prática em análise”.
Na carta à CMVM, a Ius Omnibus pede “que sejam promovidas as diligências que entenda necessárias e adequadas junto do Santander para que este corrija as informações divulgadas no SDI, sem prejuízo da abertura do respetivo procedimento contraordenacional face à violação do dever de divulgação de informação com qualidade”. Nada foi corrigido, até ao momento.