Os gatos, tal como as cobras, são vulgarmente associados às bruxas, tanto na imaginação popular como na literatura e no cinema fantástico e de terror. Não há nenhum gato à vista em A Sereia da Noite, da realizadora checa Tereza Nvotová, filmado no interior da Eslováquia, mas não faltam cobras, em especial brancas, que se manifestam em alguns dos momentos de maior tensão deste filme, que embora tenha ganho o Méliès de Prata de Melhor Longa-Metragem Europeia no Festival de Cinema Fantástico de Sitges de 2022 (e ainda o Leopardo de Ouro da secção Cineastas do Presente no Festival de Locarno), prefere fazer uma tangente ao sobrenatural, do que abraçá-lo sem ambiguidades.
Sarlota e Tamara, a sua irmã mais nova, vivem com a mãe, que as desleixa e maltrata, numa cabana perto de uma remota aldeia das montanhas. Têm como vizinha Otyla, uma cigana, que os aldeãos dizem ser bruxa. Um dia, quando Sarlota foge da mãe para a floresta, seguida por Tamara, dá-se uma tragédia. Vinte anos depois, Sarlota, que bloqueou esse terrível acontecimento e o que se passou a seguir, foi recolhida pela assistência social e criada numa instituição na cidade, onde tirou o curso de enfermagem, regressa à vila. E instala-se na degradada casa onde viveu com a mãe e a irmã, para tentar tirar a limpo o que aconteceu então com elas, com Otyla e com a própria.
[Veja o “trailer” de “A Sereia da Noite”:]
Sarlota é recebida com distância pelos locais, com exceção de Mira, uma jovem ervanária, de uma amiga da mãe e da filha desta, rapariga da sua criação, e de um jovem pastor, com o qual se vai envolver. A presença da rapariga, que traz cicatrizes de problemas recentes e rapidamente trava amizade com Mira, levanta más recordações entre os moradores e a sua chegada coincide com alguns acontecimentos estranhos, da morte súbita e inexplicável de animais domésticos ao desaparecimento de duas crianças durante uma festa de raízes pagãs na aldeia. E daí a Sarlota e Mira começarem a ser apontadas como bruxas, é coisa de um fósforo. As confusões que se seguem vão levar a uma revelação inesperada, e a que Sarlota se lembre enfim do que sucedeu quando era criança.
Em A Sereia da Noite (o título inglês, para circulação internacional do filme, é enganador e menos chegado à história do que o original checo, Noite Iluminada), Tereza Nvotová recorre à linguagem, situações, personagens-tipo e cenários do cinema fantástico e de terror (a figura da bruxa, a cabana isolada e dita assombrada, as sugestões de feitiçaria e de presenças e acontecimentos sobrenaturais, a floresta densa e ameaçadora, os animais simbólicos como as cobras e os lobos), para falar de coisas bem reais, mas não menos perturbantes. É o caso da persistência de superstições milenares e atavismos ancestrais no mundo rural e a intolerância e a agressão estúpida e cega que podem desencadear, do bloqueio de acontecimentos traumáticos do passado e como estes podem pesar sobre dramas pessoais recentes, e até mesmo da violência doméstica.
[Veja uma sequência do filme:]
Nvotová aproveita muito bem visualmente toda a envolvência natural da história para construir o clima gradualmente incómodo e ameaçador que se vive no filme, e conta com um elenco sólido (destaque para Natalia Germania no papel de Sarlota e Eva Mores no de Mira). E a longa sequência em que, devido aos alucinogénios postos à socapa por Mira nas bebidas do grupo durante a festa da aldeia, Sarlota tem uma alucinação em que percorre a floresta de noite passando por uma sucessão de sabbats de bruxas, faz-nos desejar que o próximo filme da jovem realizadora seja abertamente de terror sobrenatural, em vez de ficar apenas na fronteira, como A Sereia da Noite.