Figura açoriana invulgar que uma exposição fotográfica com catálogo e uma tese biográfica, ainda inédita, de Conceição Tavares iluminaram intermitentemente, em 2017, deixando ainda muito por descobrir e valorizar, Francisco Afonso Chaves (1857-1926) — ou coronel Afonso Chaves, como era mais conhecido — reaparece agora numa vertente em moda nos estudos académicos, o Turismo de Memória, resgatando alguns dos seus registos estereoscópicos realizados aquando da sua viagem africana de 1906. Em A Imagem Paradoxal de Victor dos Reis e Emília Tavares, mas sobretudo no seu espólio conservado em Ponta Delgada, imagens da cidade velha de Zanzibar terão chamado a atenção de Maria João Castro, que convocou para escreverem neste pequeno livro duas autoridades académicas daquele país, Abdul Sheriff e Farouk Topan, além do historiador João Paulo Oliveira e Costa, de modo a contextualizar com acuidade a viagem e o legado imagético de Chaves sobre “aquela terra de articulação secular entre africanos, asiáticos e europeus” (p. 13) nos primórdios do século passado.

Apesar da estada de apenas dois dias, 27 e 28 de agosto, trata-se, diz Sheriff, de “uma aproximação quase antropológica sobre o que viu”, com imagens que “não são as típicas de um transitório olhar de turista, mas antes de um espírito contemplativo que olha para a população cosmopolita de Zanzibar e da sua cidade [velha]” com “um sentimento de pertença” (p. 19), com retratos da vida quotidiana sem a “encenação, teatralização ou ‘orientalização’ tão em voga por esse tempo” (p. 37). Sheriff esclarece que, à época, a chamada cidade velha de Zanzibar, “até ao levantamento geral feito por Inglaterra em 1892, ainda continha apenas cerca de 500 ditas ‘casas de pedra’, mas também 1500 casas de barro com telhados de colmo”, e que Afonso Chaves fez uma “notável observação”, uma vez que os ingleses já tinham começado a forçar “as faixas mais pobres da população a rebocar as suas cabanas de barro, e a substituir os telhados de colmo por telhados de chapa ondulada importados de Inglaterra” (p. 20). Pelo seu lado, Farouk Topan, antropólogo, linguista e ex-diretor do Centro Swahili da Universidade Aga Khaan, no Reino Unido, vai ao ponto de declarar — logo nas primeiras linhas do seu texto — que “há um tributo a pagar a Francisco Afonso Chaves por nos ter legado a sua perceção visual de um segmento de Sonte Town em Zanzibar tal como era em 1906 e por, notavelmente, o ter feito durante uma visita de menos de vinte e quatro horas, em que estava fisicamente debilitado”: “um país progressivo, vibrante, dinâmico e moderno no limiar do século XX” (p. 105).


Título: “Viagem a Zanzibar, 1906. Francisco Afonso Chaves”
Coordenação: Maria João Castro
Outros autores: Abdul Sheriff, Farouk Topan, João Paulo Oliveira e Costa
Design: Pedro Serpa
Editor: ArTravel, FCSH-UNL
Páginas: 120, bilingue

Como muito bem sublinha Castro, as c. 50 fotografias estereoscópicas da ínsula constituem, portanto, um “testemunho incomum”, agora depositado no Museu Carlos Machado, “instituição que ajudou a formar” (pp. 30-31; itálico meu), o que também nos dá um bom retrato do homem, que deu nome a uma sociedade científica fundada seis anos após a sua morte, em São Miguel. Todavia, a investigadora da Universidade Nova de Lisboa não foi tão longe quanto seria possível, comparando o portefólio do açoriano com as imagens dos estúdios que então “proliferavam” em Stone Town — um verdadeiro “sultanato”, diz à p. 36 —, “maioritariamente de proprietários portugueses vindos de Goa” (pp. 34-35). Haverá certamente um abundante inventário de bilhetes-postais, como é expectável em tão relevante escala para os viajantes no Índico, donde provêm, aliás, os identificados como tais e reproduzidos nas pp. 45, 52 e 57. A visita à coleção de Rohit Ramez Ora, a quem agradece (p. 118), não foi suficiente para lhe sugerir essa abordagem.  Também podemos fazer notar que uma obra historiográfica muito importante sobre todo esse contexto regional de mobilidade das casas de fotografia com ph, como é Photographos pioneiros de Moçambique de Paulo Azevedo (Glaciar, 2020, 163 pp.), foi esquecida na Bibliografia. Ou que faltou comparar os registos de Zanzibar com outros da mesma viagem de 1906, por exemplo o da extrema modernidade em Sea Point, na Cidade do Cabo, com a montanha Signal Hill ao fundo e uma parede de enormes cartazes publicitários em primeiro plano, a ascensão de balões em Paris (v. A Imagem Paradoxal, pp. 156 e 93), ou a continuação da “observação antropológica” noutras partes do Índico africano, como as imagens estereoscópicas de Quelimane e do Iémen (pp. 184, 178).

Certamente focada em Zanzibar por interesses pessoais, Maria João Castro, que é autora dum livro sobre o país, publicado em 2017, perdeu talvez aqui a oportunidade de aprofundar ainda mais a fecundidade da obra fotográfica de Francisco Afonso Chaves, mas a surpresa e a novidade deste livro compensam, pelo menos de momento, quem o considera em altos píncaros, como eu. É que o caminho faz-se caminhando, e todos são bem-vindos…

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