Os seis elementos que integraram a Comissão Independente que entre 2021 e 2023 investigou os abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal refutaram esta quarta-feira as declarações da psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do Grupo Vita (organismo da Igreja atualmente responsável pelo acompanhamento das vítimas de abusos), que na terça-feira escreveu um artigo de opinião no Expresso a lançar dúvidas sobre o processo de validação dos testemunhos recebidos no contexto desse estudo.
Num texto enviado aos jornalistas pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que coordenou aquela comissão, os seis elementos dizem que as palavras de Rute Agulhas dão a entender que as vítimas possam não ter “existido na realidade”, possam ter “manipulado questionários ou dados com falsas afirmações ou ainda que não se tivesse seguido um complexo trabalho de validação e trabalho estatístico dos dados recolhidos”.
A polémica surgiu na quarta-feira quando, num artigo de opinião publicado no Expresso, a coordenadora do Grupo Vita, Rute Agulhas, questionou o processo de validação dos testemunhos levado a cabo pela Comissão Independente e apontou o facto de a esmagadora maioria dos testemunhos terem resultado exclusivamente de inquéritos online preenchidos sob anonimato que podem ter sido preenchidos com “falsas alegações”, pedindo à comissão uma clarificação sobre o conceito de validação considerando que apenas 34 vítimas foram pessoalmente ouvidas num universo de 512 testemunhos validados.
Rute Agulhas também lamentou o facto de a Comissão Independente ter anonimizado por completo a base de dados, o que impede que os relatos das vítimas sejam passados ao Grupo Vita para facilitar o processo de acompanhamento e de compensação financeira — isto depois de várias vítimas se terem queixado de terem de repetir às estruturas da Igreja tudo aquilo que já contaram ao pormenor durante a investigação da Comissão Independente. Ao Observador, Rute Agulhas disse mesmo já ter tido vários casos de vítimas que se mostraram chocadas com o facto de os seus relatos terem sido destruídos pela Comissão Independente.
Agora, num texto assinado por Pedro Strecht, Álvaro Laborinho Lúcio, Ana Nunes de Almeida, Catarina Vasconcelos, Daniel Sampaio e Filipa Tavares, a antiga Comissão Independente garante que “todos os testemunhos recolhidos pelas diferentes formas descritas no relatório final” foram “concretizados no âmbito da garantia prévia de um total anonimato das vítimas”.
“A esta garantia juntava-se a de que esta informação por elas fornecida seria apenas utilizada no âmbito deste estudo. Seguindo os protocolos da União Europeia de investigação científica, a base de dados era da responsabilidade exclusiva da CI, pelo que em caso algum poderia ser cedida a uma entidade externa”, dizem os elementos da antiga comissão.
Comissão Independente defende rigor da validação de testemunhos
“A validação desses mesmos testemunhos foi considerada a partir de diferentes e apertados critérios que, justamente, pudessem evitar a existência de falsos testemunhos. O guião do inquérito era longo, permitia cruzamento de informação factual e, além disso, solicitava respostas ‘qualitativas’ em aberto sobre situações e relações de abuso – sobre as quais se fez uma aprofundada análise de conteúdo”, dizem os elementos da comissão.
A propósito da destruição da base de dados, a antiga Comissão Independente garante que a Conferência Episcopal Portuguesa (que encomendou o estudo independente e que, depois disso, constituiu o Grupo Vita para dar continuidade ao acompanhamento das vítimas) teve “previamente conhecimento” do protocolo que ia ser seguido e que é aquele “utilizado em temas considerados particularmente sensíveis, como é o caso de abusos sexuais, vítimas e agressores”. Ao abrigo deste protocolo, a destruição da base de dados deu-se em março de 2024. Ao Observador, Rute Agulhas diz não ter tido conhecimento deste prazo para o apagamento de base de dados.
O antigo grupo de trabalho garante que seguiu as “normas regulamentadas pela União Europeia” e explica que, “após a entrega e divulgação final do estudo da CI, foi entregue a D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), uma cópia da base de dados, mas totalmente anonimizada, para fins de estudo ou análise futura”. De acordo com a Comissão Independente, “qualquer cidadão pode aceder a essa base de dados expurgada de qualquer dado qualitativo no Arquivo Português de Informação Social”.
“De qualquer forma, note-se novamente que houve casos em que, a pedido expresso das vítimas, foi dada ao Grupo Vita informação recolhida no contexto do trabalho da CI”, diz ainda o texto dos elementos da Comissão Independente, que “refutam assim as afirmações publicamente produzidas pela Coordenação do Grupo VITA que só podem expressar um eventual desconhecimento destes mesmos protocolos de investigação científica por nós utilizados, bem como do trabalho realizado pela CI e tornado público com a apresentação do seu Relatório Final”.
“A necessidade de resposta dos membros da ex-CI a essas mesmas afirmações surge inequivocamente perante o que estas pressupõem sobre testemunhos de vítimas, como se estas pessoas não tivessem, afinal, existido na realidade, simplesmente tivessem manipulado questionários ou dados com falsas afirmações ou ainda que não se tivesse seguido um complexo trabalho de validação e trabalho estatístico dos dados recolhidos no Estudo”, destaca o texto.
No comunicado, os elementos da antiga Comissão Independente lembram ainda que várias das vítimas que deram o seu testemunho naquele estudo viriam, mais tarde, a revelar publicamente as suas histórias — e algumas até se encontraram com o Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, em agosto de 2023.
“Por tudo isto, e desde a data de apresentação pública do seu relatório, sentiram pela primeira vez os membros da ex-CI a necessidade pública de reporem a verdade dos factos, salvaguardando assim, e acima de tudo, o bom nome e a integridade moral e ética de tantas pessoas que ousaram ‘dar voz ao silêncio’, testemunhando os episódios traumáticos que viveram na infância e adolescência enquanto vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja Católica Portuguesa e cujo impacto, como também se torna explícito no referido relatório, marcou para sempre e de forma negativa a sua vida individual, familiar, profissional e social”, diz ainda a nota. “Que agora, e no futuro, continue a existir o máximo respeito por essas pessoas, pelo seu sofrimento e ainda que junto de cada uma delas seja feita a reparação necessária por parte da Igreja Católica Portuguesa.”
Em 2021, na sequência da crise dos abusos sexuais de menores, a Conferência Episcopal Portuguesa decidiu confiar a uma Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht (um dos rostos da defesa das vítimas da Casa Pia) um estudo alargado sobre a realidade dos abusos em Portugal desde a década de 1950 até à atualidade. O relatório final desta comissão foi apresentado em fevereiro de 2023. A partir de 512 testemunhos validados, a Comissão Independente estimou em 4.815 o número de vítimas de abusos no contexto da Igreja em Portugal entre 1950 e 2022.
Já depois da apresentação deste relatório e da dissolução da Comissão Independente, a Igreja criou o Grupo Vita, um grupo de trabalho liderado pela psicóloga Rute Agulhas, com o objetivo de continuar o trabalho de acompanhamento das vítimas de abusos, mas também de desenvolver um programa de capacitação das estruturas da Igreja para melhor lidar com esta realidade no futuro. O Grupo Vita tem levado a cabo ações de formação, iniciativas de sensibilização, acompanhamentos e encaminhamentos de vítimas e aconselhamento das estruturas hierárquicas da Igreja.
A relação entre os integrantes dos dois grupos, porém, começou a deteriorar-se publicamente depois de, em junho, Rute Agulhas ter falado pela primeira vez sobre a impossibilidade de aceder às informações da base de dados da Comissão Independente.