O fundo do mar não é uma mina nem os oceanos são propriamente uma lixeira, muito embora haja quem muito faça por isso no segredo de gabinetes ou à tona da água, com o desplante e a neglicência permitidos por fiscalização medíocre e pela grave inconsciência desses atos por quem os pratica. Trata-se de um dos maiores imbróglios do nosso tempo e a fragilidade oceânica que dá título a este álbum fotográfico — também com edição em língua inglesa — é o primeiro sinal da excelência deste trabalho de Pedro Ponces Camanho, um professor catedrático da Universidade do Porto que aqui vem testemunhar (outra palavra-chave, neste contexto) a sua profunda inquietação sobre o devir dos oceanos e, em consequência, do planeta e da espécie humana.
Três décadas de mergulho em três oceanos deram-lhe grandes momentos de “admiração e espanto” (p. 26) — que as suas fotografias tão bem nos transmitem —, mas também um inesperado histórico da acelerada degradação em curso, com rutura da biodiversidade submarina, alteração dos hábitos da fauna e introdução de espécies invasoras, o mesmo é dizer: todo “o impacto nefasto” que as atividades humanas têm nos «oceanos do século XXI”, da poluição com plásticos à pesca excessiva e à acidificação e sobreaquecimento térmico da água do mar causados por dióxido de carbono a mais na atmosfera. “Se qualquer um destes factos já seria grave ocorrendo isoladamente, — diz Camanho, — os seus efeitos agudizam-se no cenário atual em que coexistem” (p. 15).
Os microplásticos introduzidos na cadeia alimentar humana afetam a saúde de todos, já sabemos, mas em especial afeta a das populações cuja dieta se baseia em peixe, como os Bajaus (Bornéu), notabilizados por serem geneticamente adaptados ao mergulho e pescarem como ninguém em apneia. Populações pobres das ilhas Fiji — viu o autor —estão a recorrer a plástico recolhido no mar para combustível de cozinha, prática “altamente nociva para a saúde, particularmente para o desenvolvimento das crianças, pois os desreguladores endócrinos presentes nos plásticos afetam o funcionamento hormonal, produzindo efeitos nocivos em diversas funções do corpo humano” (p. 22). É aterrador…
Título: “Sob Mares Frágeis”
Autor: Pedro Ponces Camanho
Prefácio: Onésimo Teotónio de Almeida
Posfácio: Pedro Rodrigues
Editor: Arte e Ciência, MHNC, Universidade do Porto
Páginas: 120
Como se não bastasse, a mineração de cobalto no mar profundo surge agora quase como um jogo — ou uma corrida — de loucos varridos, pois “a humanidade prepara-se para destruir mais um ecossistema antes de o conhecer devidamente e sem avaliar de uma forma rigorosa se os benefícios resultantes da mineração de metais valiosos no mar profundo compensam os riscos associados a esta atividade” (p. 23). Logo na primeira página do seu “testemunho”, Pedro Camanho admite que “ainda hoje é difícil imaginar que alterações climáticas dos ecossistemas marinhos podem ocorrer no tempo de vida médio de um ser humano” (p. 15; itálico meu), no entanto fica já bastante claro que o tempo urge para que soluções de preservação sejam implementadas, pois “menos de 1 % dos 361 milhões de metros quadrados dos oceanos estão protegidos” (p. 26). Se áreas marítimas forem protegidas, isso representará pouco menos que um terço da área global, mas será, ainda assim, um bom ponto de partida para novos patamares de exigência ecológica e ambiental, que não é responsabilidade exclusiva de governos e políticos, terá de ser um compromisso pessoal, pelo menos, de milhões de ilhéus e litorâneos por esse mundo fora.
Camanho vem dizer que o turismo de mergulho pode ser parte da solução, com outras virtudes além da desejável, aprazível e até terapêutica biofilia: “um tubarão no seu ambiente natural poderá render c. 200 mil dólares por ano em turismo de mergulho, enquanto um quilo de tubarão é vendido nos mercados egípcios a dois dólares e meio”; e “o turismo global associado às mantas [Mobula tarapacana] gera 140 milhões de dólares anuais, enquanto a pesca destas espécies corresponde a apenas 5 milhões de dólares” (p. 19). Tubarões-martelo e tubarões-raposo dizimados aos milhares — entre 80 e 99 %, na última década — para satisfazer degustações asiáticas das suas barbatanas em sopa, cumpririam, ao invés, funções essenciais para a conservação das barreiras e jardins de coral, “berçário dos oceanos”, cujos recifes mantêm saudáveis “repondo o equilíbrio das espécies que os habitam”. Outras vezes, o controlo demográfico de espécies invasoras pode fazer-se, como sugere quanto ao peixe-leão nas Caraíbas, com a sua introdução na alimentação humana ou “habituando os tubarões que [nas Baamas] rondam os recifes, que são animais inteligentes, à predação desta espécie invasora” (p. 24). E, de forma notável, salienta que “enquanto se desenvolvem tecnologias dispendiosas para capturar carbono, existem animais, como as baleias, que são sumidouros de carbono vivos, desempenhando gratuitamente uma função crítica para a sustentabilidade do planeta” (“a recuperação das populações de grandes baleias poderá remover c. 0,16 milhões de toneladas de carbono por ano», calculou um estudo de 2010 — p. 20; itálicos meus).
Protagonizando que a importância, dimensão global e urgência dos problemas deve resultar de “uma combinação de decisões globais e ações locais, que envolvam as comunidades”, pois “estamos umbilicalmente ligados ao mar e não somos imunes à sua degradação” (pp. 25-26), Pedro Ponces Camanho dir-se-ia um biólogo, ou um ecologista lato sensu, quando na verdade se trata dum prestigiado investigador de aeronáutica preocupado com a pegada ecológica da aviação e a descarbonização da indústria aerospacial… As fotografias deste livro resultam, portanto, de expedições pessoais a lugares distantes em que a vida subaquática alcança esplendores de fantasia ou sonho, como o portefólio aqui reproduzido documenta. Há algo de tendencialmente irrepetível em observar muito perto de nós um Dactyloptaenia orientais, catalogado por Georges Cuvier em 1829, um peixe que grunhe apesar do colorido quase carnavalesco do seu manto (v. p. 95), uma Tridacna gigas, ostra gigante que pode alcançar mais de 1 m de largura e pesar 200 kg (v. p. 70), ou um Sarcophyton trocheliophorum, o coral em forma de orelha de elefante que o zoólogo Emile von Marenzeller registou em 1886 (v. p. 57). Em todo o caso, estes últimos dados “biográficos” não constam do livro, todavia editado por um museu de ciência e história natural, que também não viu vantagem alguma em elencar alfabeticamente as espécies fotografadas ou de lhes juntar as designações consagradas nas línguas europeias.
Apesar disso, que é pouco, o livro merece todos os elogios, que o vice-reitor da Universidade do Porto Pedro Rodrigues, e o açoriano Onésimo Teotónio de Almeida, não se coibiram de expressar com o entusiasmo, a empatia e o agradecimento que lhe são devidos. Assim o façam também os seus leitores, fazendo sair da obscuridade publicações de interesse que as editoras universitárias portuguesas produzem, mas divulgam mal — infelizmente.