“Tenho inveja das pessoas que conseguem ter o tipo de profissão com que as crianças sonham um dia ter quando forem grandes.” A frase, dita à protagonista por uma ex-colega de secundário com quem se cruza na rua (naquele eterno “havemos de combinar” que nunca se concretiza), tem várias camadas de interpretação. Por um lado, a autodeclarada inveja, mesmo quando convive com o a associação destes ofícios a magros vencimentos. Por outro, a infantilização de quem não tem um emprego a sério — a infantilização imposta por uma sociedade assente na produtividade, mas também o facto de às vezes parecer que estamos só a brincar aos adultos, com pouca convicção. É desta textura de contextos e de perspetivas que vive A Educação Física, a novela gráfica da artista visual, professora e autora de BD Joana Mosi, que a traz até ao catálogo nacional da Iguana.

A protagonista não se chama Joana, mas sim Laura. O tom deixa adivinhar um pé da autoficção, mas a opção aqui é que Joana seja Joana e Laura seja Laura. A personagem ganhou uma bolsa de criação e tem um ano para escrever um livro. O livro de Laura não tem história nem tema. A Educação Física também não. É um mosaico de pequenos acontecimentos. No fundo, de tralha, como a que a protagonista e a mãe estão a tirar a custo da casa dos avós falecidos. Às vezes, esta tralha adivinha-se como uma metáfora para algo maior, mais profundo; outras, é apenas uma lupa colocada na banalidade.


Título: “A Educação Física”
Autora: Joana Mosi
Editora: Iguana

Páginas: 176

Laura tem mãe, uma espécie de engate que vive um “casamento aberto”; e também tem amigas, muitas delas de escola. Daí episódios recorrentes, em jeito de flashback, das conversas tidas em balneários e campos de aulas de Educação Física, que dão nome ao livro. Claro que há também aqui um duplo sentido, o do processo de aprender a existir. Apesar de nunca se ter conseguido sentir à vontade nas aulas desta disciplina, Laura tem agora o compromisso com as amigas de irem todos os dias ao ginásio — compromisso esse que depressa começam a querer quebrar, numa espécie de falhanço da determinação e da mudança.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A estética de Mosi é muito própria, mesmo fazendo aqui e ali lembrar António Jorge Gonçalves. Imagens do ambiente pintam as conversas, renegando os interlocutores — como o diálogo sobre relações em que vemos os bonecos com que brinca uma criança; ou ilustrações imediatamente reconhecidas como a comédia romântica Notting Hill, da televisão sempre ligada que acompanha a solidão. O livro aposta também nos vários feeds que povoam os nossos dias, do Instagram ao WhatsApp, das pesquisas no Google à playlist de Spotify. Destaque também para o detalhe delicioso dos quadros que decoram um Airbnb em Lisboa, uma exposição de clichés comprados por 9.99.

O livro de Laura não tem história nem tema. A Educação Física também não. É um mosaico de pequenos acontecimentos. No fundo, de tralha

A Educação Física acaba com algumas páginas de ilustrações aparentemente desconexas, depois de uma confusão sobre um quadro (é um abismo? É um lago?). O livro não sabe sobre o que é, porque a protagonista também não sabe quem é. É um paralelismo que resulta, que soa a honesto e que transforma A Educação Física numa obra artística, mais do que narrativa. Irá ser compreendido, sobretudo, pelas gerações que se encaixem nesta angústia contemporânea, podendo ser recebido com cinismo pelas restantes. Pontos extra para quem, como no meu caso, também não tem as melhores recordações das aulas de Educação Física.