É o regresso de David Machado ao romance, depois de A educação dos gafanhotos (2020), e traz a história surpreendente de Laura, partindo do momento em que matou um terrorista islâmico: antes de o deixar premir o gatilho, apertou-lhe ela o pescoço.

O evento que desencadeou o resto teve casa em Paris, e a história de Laura, para os leitores do romance e o mundo retratado, foi a de um assassinato que preveniu outros, prevenindo um ataque terrorista. A história fez caminho: Laura escreveu-a e a partir daí a sua vida foi andar em digressão pelo mundo inteiro a falar do momento em que fez um estrangulamento eficaz. Além disto, a narrativa tem alcance no passado, com a narradora, que está longe, a ter de ter sempre a cabeça em Peniche, sua terra-natal, onde a mãe vive os últimos dias com o pai (de Laura), com quem a personagem cortou laços.

Com isto, todo o romance vai tendo uma sabor a dissociação: em permanente digressão, Laura conhece o mundo sem chegar a tocá-lo, sempre em movimento, mantendo um terreno constante – as redes sociais como forma de horizontalizar contactos e encurtar distâncias. Ao mesmo tempo, mantém intacta a memória do lugar de onde veio, assim como a família cristalizada que deixou para trás. Sempre permanente, está ainda a figura de Liam, com quem vai mantendo contacto online, seu ex-marido, por quem largou o emprego de repórter de guerra, e da sua enteada. A narrativa avança, instigante, com o leitor interessado nos dois planos.

O ponto de maior interesse no romance será a forma como as redes sociais moldam as vidas: no caso, garantiram a fama a Laura, e com isso um livro que interessou a milhares de pessoas pelo mundo. Logo à cabeça, tínhamos um vídeo filmado à socapa no café parisiense, que correu o mundo inteiro. A questão, e David Machado retrata-a bem, é que nada é a preto e branco: as redes sociais, que aproximam, permitindo o contacto e a ilusão de proximidade, também distanciam, desumanizando, permitindo a proliferação do ódio, o exagero de qualquer sentimento.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Afinal, em vez de uma pessoa, tem-se à frente um écran, o que implica um contacto rápido e frio no mesmo movimento. Ao mesmo tempo, como o que se põe online é uma escolha, há uma ideia de ficcionalização constante, de criação de uma persona – e, com isto, de criação de um produto para mostrar, do qual capitalizar (monetária, social ou emocionalmente). No romance, chega-se a um ponto em que os seguidores crêem que as publicações de Laura são feitas por alguém que a fez desaparecer e se faz passar por ela.


Título: “Os dias do ruído”
Autor: David Machado
Editora: D. Quixote
Páginas: 264

David Machado trata bem as várias nuances que dizem respeito à ficcionalização de alguém. Laura é vista várias vezes como assassina impiedosa. Há, por isso, quem a ponha no mesmo saco de alguém que mate seja por que motivo for:

– O meu marido também matou uma pessoa. Esteve preso oito anos – diz, muito séria, a da direita. E, para que não pense mal dela, acrescenta: – Antes de nos conhecermos, claro.

(…) há sempre alguém que continua a meter-me no mesmo saco de homicidas passionais, soldados em zonas de conflito e até assassinos em série. (…)

– O seu marido é um assassino – respondo. – Não é a mesma coisa.” (p. 13)

Aqui e ali, resolve agir em consonância (não matando, mas dando a entender que matar lhe é fácil), também ela, julga-se, em busca de um chapéu sob o qual possa caber. No meio disto, as redes sociais fazem o seu caminho, escrutinando e questionando tudo, abrindo debates sobre feminismo e racismo. E a vida que o romance retrata, que é tão semelhante à vida de todos os dias, acaba por perder mais tempo a meter tudo em caixas do que a entendê-las. Leia-se:

Considerando a história colonialista europeia dos últimos séculos, uma mulher branca tem o direito de matar um homem muçulmano mesmo que este se prepare para cometer um acto terrorista? – pergunta o comentador num programa da televisão dinamarquesa.” (p. 89)

Por um lado, há quem a glorifique, seja pelo que evitou, seja por motivos xenófobos, que não raras vezes são mero populismo xenófobo. É o caso de Tiago, marido de uma amiga de Laura, que “felicita-me pela morte do Amar e comenta a ameaça do extremismo islâmico com uma fiada de banalidades da cartilha xenófoba” (p. 189). Mas é também o caso do que se espraia pela Internet: há muito ódio, muitas vezes vindo de campanhas online, que culmina em ameaças. De início, desvalorizadas, acabam por fazê-la procurar refúgio, blindando-se do ruído virtual. O que não escapa é que, à medida que vive, Laura vai sendo acompanhada por uma conversa digital sobre quem é: Laura, a heroína, ou Laura, a odiosa?

Tudo é urgente, as opiniões são disseminadas de forma imediata, e à escala planetária, tentando-se descortinar-lhe a fórmula de uma entidade aparentemente reduzida à decisão tomada num momento excepcional, o que faz com que a ex-repórter seja vista como produto, assumindo e incentivando essa visão. Para mais, há uma constante tentativa de a instrumentalizar, seja para a transformar no bode expiatório da causa anti-Islão, seja para a transformar no seu símbolo, como se vê no site de uma organização neonazi húngara em que aparecem T-shirts à venda com uma fotografia do momento em que Laura asfixia Amar. A legenda é um tratado: “Vamos varrer o país uma barata de cada vez.”

Tocando em vários pontos, David Machado surpreende, sobretudo porque os casa. Laura é uma personagem complexa, não tendo o autor abdicado de usar pontos fulcrais da sua vida na narrativa para constituir a sua psique, e de forma sempre operante. Em termos de informação, nada é escusado, nada está a mais, nada enche chouriços. A leitura flui, numa linguagem escorreita, por uma narrativa calibrada.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.