Uma nacionalização feita sob a pressão dos gestores e dos bancos, que cortaram o crédito, e uma privatização realizada, três anos depois, que exigiu mais dinheiro público para prometer a prazo um maior retorno, mas que fez subir o risco para o Estado.
O Tribunal de Contas conclui que a nacionalização da Efacec não atingiu “qualquer dos objetivos” e que foi realizada “sem fundamentação, técnica e independente, do interesse público”. O relatório final da auditoria ao financiamento público da empresa industrial que passou para as mãos do Estado em 2020 confirma as conclusões do relatório que já tinham sido avançadas pelo Observador sobre uma operação onde o financiamento público pode chegar aos 564 milhões de euros, tendo custado até agora 484 milhões de euros.
E denuncia um financiamento do Estado que “foi efetuado sem identificação das suas causas e responsáveis (acionistas, credores, administradores) aumentando o risco moral destes ficarem protegidos contra as consequências das suas ações ou omissões.”
A situação, defende, “é tanto mais grave quando, tal como sucedeu na Efacec, a nacionalização foi efetuada sem fundamento técnico e independente do interesse público e os apoios financeiros públicos à empresa “responderam aos pedidos desta, “sem apreciação técnica prévia da Parpública que validasse a sua razoabilidade”.
Venda de 2023. Proposta escolhida potencia retorno, mas custou mais ao Estado e tem mais risco
Para além da nacionalização — decidida em 2020 no segundo Governo de António Costa — o Tribunal de Contas incluiu na auditoria o resultado da privatização feita já por um outro Governo de António Costa e com protagonistas distintos à frente das pastas da Economia e das Finanças. E alerta que a proposta escolhida em 2023 para comprar a empresa implicou mais gastos para o Estado e representa um risco acrescido.
Efacec vendida à Mutares “sem gritos”. Estado entra com mais 160 milhões no fecho da operação
Ao escolher a proposta que garantia uma maior taxa de rentabilidade, o Estado “introduziu um risco à operação, uma vez que, para obter retorno futuro, mas incerto, gastou mais 271 milhões de euros”. Esta foi uma decisão tanto mais arriscada por ficar dependente do sucesso do investidor vendedor em inverter a tendência de degradação do volume de negócios da Efacec e vender a empresa a médio prazo (5 anos), pelo menos, por 563 milhões de euros”. É com base nesta projeção de encaixe apresentado pelo fundo Mutares que comprou a Efacec no ano passado que a operação pode dar um retorno de 385 milhões de euros à Parpública.
A auditoria verificou que os encargos públicos associados à transação foram superiores em 39 milhões de euros aos constantes das proposta definitiva da Mutares (já considerando os 30 milhões de euros previstos para contingências operacionais) e a recuperação potencial da despesa pública realizada pela Parpública diminuiu devido a um plano de negócios mais conservador.
Ainda sobre a operação de venda, o tribunal diz que o caderno de encargos foi menos exigente na capacidade técnica de potenciais investidores e os critérios de seleção não estavam associados a ponderações, métricas e prioridades. Esta situação, associada à ausência de uma comissão de acompanhamento do processo, eleva os riscos de parcialidade e discricionaridade na avaliação das propostas.
O Tribunal é muito crítico do facto dos contratos estarem totalmente redigidos em inglês, alguns dos quais estão depositados apenas em entidades privadas.
Nacionalização feita sob pressão de gestores e bancos
O Tribunal de Contas considera ainda que a nacionalização avançou “impulsionada pelos gestores da Efacec” que à data estavam a tentar vender as ações da empresa em mercado, isto por causa das suspeitas que recaíram sobre a maior acionista à data, Isabel dos Santos, por causa do caso Luanda Leaks.
Os gestores da empresa, presidida por Ângelo Ramalho, fizeram chegar vários alertas ao então ministro da Economia, Pedro Siza Vieira que, em conjunto com o ministro das Finanças, João Leão, e o então primeiro-ministro António Costa, assinam o decreto-lei de nacionalização, decidida em plena pandemia. Esta decisão “não foi acompanhada de qualquer previsão sobre o seu impacto nas contas públicas como deveria, em desfavor dos direitos dos contribuintes”.
Também o papel dos bancos financiadores — Caixa Geral de Depósitos, Novo Banco e Millennium BCP — que tinham penhor sobre as ações da Efacec é examinado pelo Tribunal de Contas. Estes bancos, aponta a auditoria, bloquearam o financiamento à empresa por causa do Luanda Leaks, exigindo a saída da empresária angolana. “As entidades financiadoras também titulares de penhores sobre as ações da Efacec, mantiveram-se firmes no posicionamento de só voltarem a financiar depois de substituída a acionista indireta Isabel dos Santos”.
Linha de apoio à Covid-19 só para a Efacec. Privilégio e falta de transparência
Já com gestão pública, o Estado “privilegiou o Grupo Efacec ao criar uma linha de apoio Covid-19 específica e exclusiva para as suas empresas”. Um processo que, diz a auditoria, “enfermou de falta de transparência” porque ao ser publicado não referia a Efacec, “dando a aparência desta linha se destinar a qualquer empresa sedeada em território nacional”, desde que cumprisse as condições estabelecidas. O Tribunal de Contas aponta ainda o facto de não existir “qualquer evidência” de que a Parpública (empresa que ficou com a Efacec na sua carteira) ter confirmado, como devia, que o produto desse financiamento não foi destinado a pagar aos acionistas privados da Efacec, nomeadamente à empresa de Isabel dos Santos.
Apesar de um dos objetivos apontados à nacionalização ser a salvaguarda dos postos de trabalho, “os gestores da Efacec continuaram a promover a política de emagrecimento da empresa, incidindo sobre os melhor remunerados, em regra mais qualificados”. A ponto de, em 2022, quase um quarto dos trabalhadores terem saído da empresa. A nacionalização também não travou a degradação da situação económica e financeira da Efacec que entrou em falência técnica, o que levou o Estado a injetar fundos periodicamente até à venda.
Nem Siza Vieira nem João Leão foram ouvidos pelo Tribunal de Contas nesta auditoria cujo contraditório foi pedido aos ministérios da Economia e das Finanças do último Governo de António Costa que eram liderados por António Costa Silva e Fernando Medina (com João Nuno Mendes na pasta de secretário de Estado a conduzir a operação), respetivamente. A Parpública também é citada no contraditório que, de uma maneira geral, não muda as conclusões do relato do Tribunal de Contas,
Primeira tentativa de venda falhou por falta de resposta de Bruxelas
As contas aos custos da Efacec chegam aos 484 milhões de euros de fundos públicos, dos quais 445 milhões de euros foram realizados via Parpública e 35 milhões de euros pelo Banco do Fomento. Há ainda quatro milhões de euros gastos em assessorias relativas à venda. Este montante de financiamento é o dobro do previsto na primeira tentativa de privatização realizada ainda com Siza Vieira no final de 2020. O ex-ministro da Economia reagiu publicamente quando foram conhecidas as conclusões preliminares da auditoria, questionando porque não foi concretizada esta venda à DST.
Sobre a primeira tentativa de venda, o Tribunal de Contas diz que a Parpública anulou o processo de venda “por não se encontrarem verificadas as condições previstas no acordo de venda direta”. Isto porque a “Comissão Europeia não confirmou por escrito que os auxílios públicos inerentes ao processo de venda eram compatíveis com o mercado interno”, no que toca a ajudas de Estado.
A auditoria constata também que a acionista minoritária que ficou na Efacec após a nacionalização da parte detida por Isabel dos Santos — a MGI Capital é detida pela Têxteis Manuel Gonçalves e pela José de Mello — não teve qualquer despesas com a reprivatização. E há o risco do encargo para o Estado aumentar se a MGI não cumprir as responsabilidades do acordo de transição assinado quando vendeu a maioria do capital da Efacec à Interfell de Isabel dos Santos em 2015.
Numa auditoria onde se lê várias vezes a expressão do “risco moral” a propósito do gasto de dinheiros públicos sem identificação das causas e dos responsáveis, o Tribunal de Contas lembra que recomendou para a legislatura do último Governo de António Costa, durante o qual foi vendida a Efacec, “o registo e a comunicação periódica do ciclo de responsabilização pelas perdas financiadas por despesa pública, identificando responsáveis, ações desencadeadas para recuperar os correspondentes montantes e resultados obtidos”.
O Tribunal de Contas faz ainda referência à divulgação antecipada de parte do conteúdo do relato (pelo Observador) desta auditoria, feita à revelia das regras de acesso aos processos. E considera que a divulgação de resultados de uma auditoria em curso e sem que tenham sido apreciados e aprovados pela instância competente “não defende o interesse público”.