Foi em 1977 que Francis Ford Coppola começou a pensar em rodar um filme de formato operático que fizesse uma analogia entre a decadência e a queda do Império Romano e o destino dos EUA no futuro, tendo começado a escrevê-lo em 1983. As várias tentativas do realizador de O Padrinho para financiar a produção foram sucessivamente goradas, em finais dos anos 80 por causa das más bilheteiras de Do Fundo do Coração e Tucker: O Homem e o Seu Sonho, e em 2001 por causa dos ataques terroristas do 11 de Setembro. Coppola acabou por pagar Megalopolis do seu bolso, com 120 milhões de euros da venda de parte da sua exploração vinícola na Califórnia. O filme teve antestreia mundial no Festival de Cannes, partiu a crítica ao meio e é um considerável fracasso comercial nos EUA, com uma bilheteira de 10 milhões de dólares até agora.

Em 1978, então a trabalhar Apocalypse Now, Francis Ford Coppola disse que o seu maior medo era que estivesse a fazer um “filme mesmo mau, embaraçoso e pomposo sobre um tema importante”. A frase que não serviu a Apocalypse Now aplica-se agora, quase meio século mais tarde, a Megalopolis: é uma salada de idealismo pueril, gigantismo superficial, primarismo alegórico, auto-importância insuflada, infantilismo político, incoerência narrativa, pretensão filosófico-cultural risível e visão artística desgovernada. O autor de dois dos filmes mais populares e admirados de sempre, O Padrinho e O Padrinho — Parte II, assinou uma obra tão descomunal e ambiciosa, como grandiloquente e vácua.

[Veja o trailer de “Megalopolis”:]

Megalopolis passa-se numa Nova Iorque alternativa e retro-futurista, reimaginada como Nova Roma, controlada por um punhado de famílias patrícias decadentes, que só pensam em poder, dinheiro, diversão e prazer. Arte e visionarismo de um lado, política e pragmatismo do outro, chocam-se nas pessoas do arquiteto César Catilina (Adam Driver), que acaba de ganhar um Prémio Nobel por ter inventado o Megalon, um material de construção revolucionário, quer transformar Nova Roma numa utopia urbana em que todos viverão felizes e em harmonia (não se sabe bem como nem porquê, Catilina também tem o poder de parar o tempo); e do Presidente da Câmara da cidade, o conservador e prático Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), que aposta no betão e num enorme casino que traga receitas ao município. O seu projeto é apoiado pelo riquíssimo banqueiro Hamilton Crasso III (Jon Voight), também tio de Catilina.

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[Veja uma entrevista com Francis Ford Coppola:]

O enredo da rivalidade entre arquiteto e autarca é irrigado por uma série de subenredos simplistas e frenéticos, desconexos ou espectaculares, ilustrando o estado a que chegou Nova Roma e envolvendo toda uma série de personagens mais ou menos coloridas e esquemáticas, associadas àqueles por parentesco, amizade, interesse, amor, antagonismo ou ódio (é o caso do desregrado Clodio, interpretado por Shia LaBoeuf, e que é o exato oposto do seu primo Catilina), ao mesmo tempo que os projetos de ambos, que implicam arrasar grande parte de Nova Roma, fazem crescer o descontentamento e desencadear a revolta numa população que nunca passa de uma massa anónima e facilmente manipulada pelas elites governantes.

O filme põe-se, cândida e naturalmente, do lado de Catilina, o artista que vê mais longe que qualquer outra pessoa, e que se empenha, a todo o custo, em concretizar a sua utopia para o bem maior da comunidade e do Homem, desdobrando-se em poses dramáticas, gestos “poéticos”, citações deslocadas de peças de Shakespeare e pronunciamentos ingénuos ou egomaníacos (“A minha mente emersoniana”). Ao mesmo tempo que se debate com um trágico acontecimento do seu passado familiar que o chegou a levar a tribunal, Catilina luta contra a bebida e inicia uma relação com Julia (Nathalie Emmanuel), que nem por acaso é a filha do seu rival Cicero.

[Veja uma entrevista com Adam Driver:]

Sempre que Catilina começa a falar ou a manifestar o seu suposto génio, é difícil conter o riso, tão involuntariamente ridícula, afetada e caricatural é a personagem, e cerradamente cabotina a interpretação de Adam Driver. Aliás, as raras palavras sensatas pronunciadas em Megalopolis saem da boca de Cicero, quando diz àquele: “As utopias não oferecem soluções prontas-a-usar. As utopias transformam-se em distopias”. Mas bom senso é coisa que aqui não existe, tal como organização, clareza ou nexo.

[Veja uma sequência do filme:]

O filme é visualmente opulento, tem uma direção artística estonteante e há momentos em que o gesto cinematográfico de Coppola se manifesta no seu mais brilhante e imaginativo (ver o colapso da enorme estátua da Justiça, ou a mão a sair da nuvem para a lua no sonho de Catilina), a par com outros de um “kitsch” e de uma piroseira indignos do realizador. As interpretações são muito desiguais e  desequilibradas, e atores como Dustin Hoffman ou Talia Shire pouco mais estão ali a fazer do que figura de corpo presente. E o discurso de Megalopolis pode soar a igualitário, mas a essência da história está nos seus antípodas, e a sua pretensa atualidade não passa de maquilhagem para o seu anacronismo e total falta de sintonia com a realidade.

Não se pode negar a Francis Ford Coppola a coragem de se arriscar a trabalhar a uma escala como hoje em Hollywood só é permitida aos filmes de super-heróis e de criaturas como Godzilla ou King Kong, sem o apoio de um grande estúdio (mas também sem a sua interferência) e recorrendo ao seu próprio dinheiro. Neste aspeto, a história da difícil concretização de um projeto grandioso e fantasista, como é a de Megalopolis, parece uma metáfora para a de Coppola, e Catilina poderia ser o correlativo ficcional deste.