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"O Fassbinder está morto, o Godard e o Pasolini também. Já não há radicais": o que vai na mente de Abel Ferrara?

"Turn in the Wound" é um cruzamento entre a guerra na Ucrânia, a visão poética de Patti Smith e o cinema particular do americano e passa no DocLisboa. Falámos com o realizador na Berlinale.

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"Estou-me a borrifar para o que dizem, se quero fazer algo, faço. Não quero mesmo saber das opiniões das pessoas"

NurPhoto via Getty Images

"Estou-me a borrifar para o que dizem, se quero fazer algo, faço. Não quero mesmo saber das opiniões das pessoas"

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Numa sala afastada dos jornalistas que acompanham o festival de cinema de Berlim (Berlinale), o cineasta norte-americano Abel Ferrara está sentado, à espera para conversar sobre o seu novo filme, Turn In The Wound, um ensaio cru, sem lógica aparente, que cruza a guerra na Ucrânia e os concertos poéticos de Patti Smith. O filme estreia-se agora em Portugal, no festival DocLisboa, e parece já chegar “tarde”. Não no sentido de ser datado, porque o conflito continua, Patti Smith também. Tardio porque, apesar dos bombardeamentos, dos feridos, das mortes e na tragédia que só a guerra sabe gerar, muitas pessoas têm noção, através, sobretudo, da comunicação social, do que se está a passar. Daí que este filme junte a poesia e o horror, como se o realizador entendesse que o cinema pode ser um suporte para uma tragédia, mesmo que chegue sem grande estrutura, como se o aparente amadorismo com que filmou fosse suficiente para mostrar o que se passa.

Não há artifícios, ruídos, bandas sonoras. Há palavras, sangue, bombas e reflexões de uma das maiores artistas de todos os tempos. O autor de filmes como o Rei de Nova Iorque (1990), The Driller Killer (1979) ou Pasolini (2014) vive, hoje em dia, em Roma (morada que já lhe deu um filme, o docuemntário Piazza Vittorio), tal como o ator Willem Defoe, seu longo colaborador. Tem 73 anos, poucos ou nenhuns filtros, mantém os cabelos grisalhos encaracolados e o traje negro à estrela de rock. Afinal, é do Bronx. É budista, não toca numa pinga de álcool mas assume uma relação contínua com outros vícios.

[um excerto do filme “Turn in The Wound”, de Abel Ferrara:]

Este estilo de pegar numa câmara e numa pequena equipa e ver o que acontece não é novo. Em O Projeccionista (2019), por exemplo, Abel Ferrara explorou as memórias de um cinema vivido e descoberto em Queens, conversando com um proprietário de uma sala naquela região dos Estados Unidos. Em Bad Lieutenant (1992), onde nos trouxe um polícia corrupto à procura de redenção, parecia estar a falar dele próprio, sendo de conhecimento público que o realizador tinha trabalhado sob o efeito de drogas. Agora, Abel Ferrara quer respostas para a maldade humana.

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Em Turn in The Wound, que surge de uma vontade tão forte e banal como a de querer simplesmente viajar até à Ucrânia, há outro tipo de chamamento. O de ir ao encontro da linha da frente, do comum dos mortais a quem não foi dada outra alternativa se não sobreviver num clima de guerra. “O exército russo anda à procura dos indefensáveis, sempre à procura de formas de aterrorizar a Ucrânia. Neste trabalho, fiquei lá até quando pude. Os jornalistas é que têm de fazer esse acompanhamento da guerra. Gostava de ir à Rússia, mas não é trabalho para mim. Não vou saltar de um avião com um paraquedas e uma câmara”, revela numa conversa na Berlinale onde o Observador esteve presente.

Ya know what i’m sayin’? (calão dos subúrbios nova-iorquinos que significa, traduzido literalmente: “sabes o que estou a dizer?”). Abel Ferrara, quando partilha as histórias dos dias em solo ucraniano, é, muitas vezes, disperso e repetitivo num caos que revela, contudo, uma preocupação maior sobre o estado do mundo. Fala de como se encontrou com o presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelensky — não foi a única figura norte-americana fora da política a fazê-lo — e da crença de que os russos nem se importam com os seus filhos. “Não querem saber. Se não te importas com o teu filho, vais importar-te com quem? É demoníaco. De onde vem este mal? O que prometem aos soldados daquele país, cinquenta virgens?”.

"O exército russo anda à procura dos indefensáveis, sempre à procura de formas de aterrorizar a Ucrânia", diz o realizador, a propósito do filme "Turn in the Wound"

K.K. R.S.

Turn in The Wound esteve para ter duas partes, mas depois de conhecer Patti Smith — que recentemente esteve em Portugal a apresentar a exposição Evidence com os Soundwalk Collective no CCB — percebeu que não queria seguir os moldes tradicionais do documentário. “A Patti começou a dar-me acesso aos poucos, a deixar que colocássemos o telemóvel ‘na cara’ dela. Foi muito cool, viajámos até Paris, onde estava a gravar, filmámos o processo criativo e logo seguimos para a Ucrânia. Tudo com o mesmo editor. Andámos por lá nas ruas como fiz no Chelsea On The Rocks [2008], só a ouvir as pessoas, ligar a câmara. Do Zelensky ao miúdo de doze anos a jogar basquetebol”, diz.

Com tantos filmes na carreira e uma língua afiada que não se deixa intimidar por críticas mais ferozes — e as do seu mais recente filme não são nada animadoras — Abel Ferrara encontra-se seguro do que anda a fazer. “Estou-me a borrifar para o que dizem, se quero fazer algo, faço. Não quero mesmo saber das opiniões das pessoas, daqueles que questionam porque é que um americano que vive em Roma foi até à Ucrânia. Apeteceu-me ir, sabia que tinha de fazer algo metafórico. Não queria ser morto, mas sim chegar a uma verdade à minha maneira. Há lá gente que quer morrer, matar o outro. Assim que vais além da fronteira com a Polónia, estás numa zona de guerra. No último circuito de Dante”, conta.

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Quando o realizador é questionado sobre as tais críticas, sobretudo as que olham para um lado mais exploratório de figuras dos EUA relativamente à guerra na Ucrânia, Abel Ferrara começa a fazer uma retrospetiva da carreira. Da família que sempre o apoiou às primeiras experiências com as câmaras, com apenas 17 anos. Fez-se cineasta a olhar para nomes como François Truffaut ou Jean-Luc Godard na famosa revista francesa Cahiers du Cinema. As drogas e o álcool tornaram-se parte dele, durante a rodagem e fora dela, até aos 61 anos, altura em que decidiu cortar de vez. “Se ainda continuasse a consumir, já não estaria vivo há muito, porque me estava a borrifar para a qualidade do produto”.

Deu os primeiros passos ao usar uma câmara Super8 e aproveitou a escola para potenciar a criatividade. “Era o tempo da viagem à Lua, tudo era possível. Logo veio a guerra do Vietname, a morte do Malcom X, mas a vontade de ser realizador nunca mudou.” Nem isso, nem o que pensa sobre quem escreve sobre o seu cinema, acrescentamos nós. “O Fassbinder está morto, o Godard e o Pasolini também. Já não há radicais, gente que faça cinema radical. Estou a inventar uma linguagem para mim, que expresse o que vejo. Faço-o há 50 anos. Claro que vou desapontar muita gente, mas porque é que haveria de escrever sobre um filme de que não gosto? 80% dos textos que li sobre os meus projetos queriam explicar-me o que deveria ter feito. Se queres filmar, filma. Quando vou ao cinema, se não me estiver a ligar com o filme, saio”.

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"Falar de paz no mundo é impossível agora. Há 75 anos houve um genocídio em massa com os judeus. Parece que está tudo para acontecer outra vez. Fuck me."

dpa/picture alliance via Getty I

Abel Ferrara acredita que teve sorte ao longo da carreira e considera que hoje é mais fácil fazer cinema. Basta pegar no telemóvel, tal como fez no seu mais recente filme, e explorar a história que quer contar. “A revolução está a acontecer no Tik-Tok e no Youtube”, diz, mostrando-se a par das novas tendências. “Tens o mundo todo como audiência, dantes só um grupo de gajos em Hollywood é que conseguia vingar”. O realizador diz ainda que devemos agradecer a Steve Jobs, fundador da Apple, pela criação de gadgets ou de telemóveis como o iPhone. É também professor de representação e, tal como diz aos seus alunos, o melhor é mesmo “afastarem-se de gente negativa”. “Se alguém for negativo contigo, manda-o à merda. Querem que sejas um advogado ou um médico? Boa, isso é para outra pessoa. Persegue a tua visão, pode ser que tenhas sorte. As ferramentas estão todas aí.”

Quando a conversa passa pelas supostas “origens do mal”, Abel Ferrara aponta o dedo a Donald Trump que, ao contrário da altura em que a Berlinale ocorreu (no início deste ano), já é oficialmente o candidato republicano às eleições presidenciais que vão decorrer em novembro nos Estados Unidos. “A maldade está em todo o lado. Sou budista, não acredito no demónio. Não crescemos prontos para matar. De onde vem? Não tenho resposta. Ao John Ford também fizeram a mesma pergunta e ele respondeu: ‘como posso saber?’ Quanto ao Trump, sim, é um sociopata. A personificação do mal, não quer saber de ninguém. Conheci-o quando era democrata. Metade do meu país está apaixonado por ele. Como é que se gosta de um maníaco? Falar de paz no mundo é impossível agora. Há 75 anos houve um genocídio em massa com os judeus. Parece que está tudo para acontecer outra vez. Fuck me.”

“Turn in the Wound” passa no DocLisboa no domingo, dia 20 de outubro, às 16h30 (Cinema São Jorge, Sala M. Oliveira) e na quinta-feira, dia 24 de outubro, às 19h45 (Cinema Ideal)

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