A escalada de tensão no Bairro do Zambujal, na Amadora, ao final da tarde desta terça-feira alastrou a vários pontos da Grande Lisboa, como Oeiras, Loures e Sintra. Ao início da madrugada, as autoridades tinham confirmado oficialmente dois autocarros e um carro consumidos pelas chamas e um detido por posse de material combustível. Houve ainda indicação de várias chamadas para falsas ocorrências.
Os incidentes começaram com um primeiro autocarro, pertencente à Carris Metropolitana, incendiado no Bairro do Zambujal, após uma vigília durante a tarde em memória de Odair Moniz, residente no bairro e que foi morto pela PSP esta segunda-feira numa operação policial na Cova da Moura.
O momento em que o autocarro é incendiado: as imagens e os vídeos da tensão no bairro do Zambujal
O Observador viu um grupo de quatro pessoas, todas com cara tapada, junto ao autocarro que ardeu no Bairro do Zambujal. O incêndio começou perto da porta dianteira do autocarro e alastrou rapidamente. Em poucos minutos, as chamas dominaram o veículo. O grupo fugiu do local. Por volta das 19h40, as chamas estavam controladas.
De acordo com o superintendente da PSP, o primeiro autocarro foi “furtado”, mas a polícia só soube disso “posteriormente através do motorista”. “Até ao momento não tínhamos indícios do que estava a acontecer”, referindo que “cabe à Polícia Judiciária tentar obter mais esclarecimentos”. Fonte da PSP avançou ao Observador que o autocarro foi furtado perto do Ikea de Alfragide e levado até ao Bairro do Zambujal.
Segundo a SIC Notícias, duas pessoas foram assistidas por inalação de fumo no Bairro do Zambujal, tendo os bombeiros sido escoltados pela polícia às próprias casas dos afetados. Fonte policial avançou ao Observador que a Polícia Judiciária tomou conta da investigação ao ataque ao autocarro. Durante a noite, a PJ esteve no bairro a fotografar o local e o autocarro que ardeu. Já depois das 21 horas, foi detida uma pessoa por posse de material combustível, avançou fonte da PSP ao Observador.
O superintendente Manuel Gonçalves revelou que há “equipas policiais em vários locais da cidade da Amadora e arredores a prevenir que situações aconteçam”. “Temos registo de várias comunicações falsas”, apelando à população a “que não desviem a atividade da polícia para situações que não se confirmem”. “A situação do autocarro [no Zambujal] foi uma das diversas [ocorrências] a que houve equipas no local a confirmar [a veracidade] ou não. Houve telefonemas para as esquadras a dar conhecimento de incêndios que não aconteceram”, declarou.
Pelas 1h35, segundo a SIC Notícias, as autoridades evitaram que um foco de incêndio perto das mangueiras de uma bomba de gasolina, junto à Cova da Moura, alastrasse. Foi uma carrinha da unidade de intervenção rápida da PSP que conseguiu apagar o incêndio. A mesma televisão revelou que a polícia tentou agarrar uma pessoa e que terá chegado a disparar balas de borracha, não se sabendo se deteve o suspeito de tentar executar o crime. O bairro encontrava-se já nessa altura fechado — ninguém entrava e ninguém saía, nem os bombeiros.
Cerca de uma hora depois, ouviam-se petardos e fogo de artifício e eram visíveis colunas de fumo. As forças policiais foram reforçando o seu dispositivo com equipas de intervenção, não sendo possível confirmar se as autoridades se digiram realmente para dentro do bairro ou se cruzaram apenas a entrada da Cova da Moura.
Distúrbios alargaram-se à Grande Lisboa
Um segundo autocarro foi incendiado, mais tarde, na Portela de Carnaxide, Oeiras. Segundo Manuel Gonçalves, superintendente da PSP, “tudo indica” que estará relacionado com a situação na Amadora. Foi ainda confirmado o incêndio de carro particular e de vários caixotes do lixo. A PSP utilizou balas de borracha e conseguiu entrar no bairro. O local dos incidentes foi visitado pelo presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, ao início da madrugada, que apelou à “calma e à tranquilidade”. “Estamos a falar de um bairro de pessoas pacatas e trabalhadoras. Não posso deixar de apelar a todos os moradores que não sei deixam envolver por grupos provocadores que pretendem provocar distúrbios. O que é preciso é calma”, começou por dizer aos jornalistas.
No bairro da Amadora, Casal de Mira, um grupo de oito indivíduos incendiou mobiliário, entulho e até um carro nas ruas. Não havia presença intensa de polícia, apenas três motos da equipa do Corpo de Intervenção da PSP estiveram no bairro mas sem conseguir deter ninguém. Minutos depois abandonou o bairro.
O autarca defendeu que “a PSP está a fazer um trabalho extraordinário de contenção, com condicionamentos de entrada e saída para não haver problemas”. E continuou: “A política está a atuar com a máxima tranquilidade e o que se espera dos moradores é que reajam em conformidade. Os provocadores pretendem que a polícia entre pelo bairro e haja confrontos”. Isaltino Morais revelou, ainda, não ter falado com ninguém do Governo, mas defendeu que “este é o momento da PSP atuar”.
Zambujal. Advogada da família relata invasão violenta e agressões na casa do morto pela PSP
Há ainda registo de um carro da PSP de Casal de Cambra, em Sintra, que foi atingido por um cocktail molotov, por volta das 20h30 desta terça-feira, quando estava estacionado junto à esquadra. A informação foi avançada pela CMTV e confirmada ao Observador por fonte da PSP. A mesma fonte referiu ao Observador não haver registo de danos na viatura, nem na esquadra. Também não há indicação de feridos.
Pelas 3h00, em Casal da Mira, Amadora, o Observador viu um grupo de oito pessoas a alimentar vários focos de incêndio com entulho. O clima era semelhante ao vivido na Cova de Moura, também durante esta madrugada, com muitos gritos contra a polícia. As autoridades deslocaram-se ao local em motas mas não permaneceram no bairro.
No mesmo concelho, segundo a Lusa, mas na Damaia, houve desacatos em várias ruas, nomeadamente o arremesso de petardos e de pedras na via pública, bem como fogo posto em vários caixotes do lixo.
Já de acordo com o Diário de Notícias, a PSP também reportou situações de caixotes do lixo incendiados na Rua Maria Pia, em Campo de Ourique, em Lisboa, na Rua do Depósito, no Catujal, em Loures, na Rua Santo Eloy, na Pontinha, em Odivelas, e na Avenida Infante Dom Henrique, em Agualva-Cacém, em Sintra.
Portela de carnaxide, pic.twitter.com/S7UEEKxP0K
— João Barros (@joaobarros80) October 22, 2024
“Vocês também têm filhos, deviam pensar”
Os moradores do Bairro do Zambujal, Amadora, estiveram durante a tarde numa vigília em homenagem a Odair Moniz, o homem de 43 anos morto pela PSP na madrugada de segunda-feira. Depois ouviu-se o rebentamento de alguns petardos e disparos isolados para o ar, enquanto os residentes se juntavam para pedir “justiça”, defendendo que a polícia “disparou a matar”. O corpo de intervenção da PSP chegou ao bairro quando faltavam poucos minutos para as 17h para “dissuadir” momentos como os da noite de segunda-feira. Uma missão que se revelou infrutífera.
Jaiza Sousa foi uma das moradoras que participou na vigília durante a tarde. De megafone na mão, é uma das que dá o mote às palavras de ordem do grupo. Ao Observador diz que Odair Moniz era um “homem pacífico”, “amado por todos da comunidade”. A mulher acredita que a atuação da polícia, na madrugada de segunda-feira, foi “mais do que desproporcional” e que o “polícia que disparou fê-lo para matar”.
Reunidos junto a um café do bairro, perto daquele onde Odair Moniz trabalhava, o desagrado com a presença da comunicação social era evidente, logo após o final da vigília, que durou cerca de uma hora e meia. Muitos recusavam-se a falar. Alguns dos membros da associação de moradores aconselhavam as equipas de reportagem a afastarem-se do local.
Foi nesse momento que chegou a primeira equipa da PSP, uma carrinha com elementos do corpo de intervenção que se posicionou no local, mas sem qualquer intervenção. Logo a seguir chegaram mais reforços — elementos das Equipas de Intervenção Rápida da PSP — com o objetivo de “dissuadir” que com a chegada da noite o Bairro do Zambujal voltasse a dar palco a uma batalha campal entre alguns grupos de encapuzados e os elementos das forças de segurança.
Pelas 17h, um grupo de cerca de 100 pessoas de braço no ar aproximaram-se das equipas da PSP. Cortaram o movimento de uma rua, com cânticos de “justiça”, “abaixo o racismo” e “polícia racista”. “Vocês também têm filhos, deviam pensar”, gritou uma das manifestantes para os agentes, que se encontravam a alguma distância. Ao fim de pouco tempo o grupo acabou por recuar mais para o interior do bairro.
[Já saiu o quarto episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts e no Spotify. E pode ouvir aqui o primeiro episódio, aqui o segundo e aqui o terceiro.]
Moradores denunciam “crime bárbaro” e pedem que Odair Moniz não seja esquecido
Ao longo da tarde o Observador foi falando com alguns moradores do bairro do Zambujal. Todos eles descreveram Odair Moniz como um homem pacífico. “Ele era um amigo, um homem trabalhador, que se levantava todos os dias de manhã para vir trabalhar no café dele, juntamente com a mulher. Pai de família, amigo de todos no bairro, um homem que respeitava todo o mundo, desde o grande ao pequeno, e que era respeitado por todos”, disse Jaiza Sousa, que soube as notícias da morte de Odair pelo filho, que lhe ligou em lágrimas.
“Foi uma perda muito grande”, disse também o presidente da Partilha — Associação de Moradores do Bairro do Zambujal. “Era uma pessoa muito querida aqui para a comunidade do bairro do Zambujal. Gilberto Pinto acrescenta que era costume Odair Moniz trabalhar com a associação de moradores, ajudando a fazer as rotas para ir buscar comida às instituições com quem tinham protocolos, como a Padaria Portuguesa.
Gilberto Pinto descreve que toda a comunidade está em choque e que os protestos da noite de segunda-feira foram um “grito de revolta da população”. “O que é que estas pessoas querem? Só que se faça justiça, mais nada. Que se descubra a verdade e que se faça justiça”, afirma, acrescentando que espera que os ânimos se acalmem no bairro.
“Isto é um grito de revolta da população, porque o que aconteceu hoje, o que aconteceu ontem podia-me ter acontecido a mim na Cova da Moura”, diz Gilberto Pinto.
Jaiza Sousa sublinha que se tratou de um crime de racismo. “Sendo a pessoa que ele era, não merecia, mas só pelo simples facto de ser negro já é bandido, já é ladrão, já é traficante”, lamenta. “Eu digo que foi propositado. Ele sabia muito bem para onde estava disparar, podia ter disparado na perna, ele disparou para matar”, afirma.
A mulher pede, como muitos outros, que se faça justiça e que este caso não fique esquecido. “Peço a Deus que seja feita justiça, para não ficar só mais um preto que é assassinado e já foi e que o caso não seja esquecido”.