Apesar de ser realizado por um estrangeiro, o brasileiro Karim Aïnouz (O Céu de Sueli, A Vida Invisível, Motel Destino), que faz aqui o seu primeiro filme em língua inglesa, O Jogo da Rainha tem todas aquelas qualidades de cuidado e rigor na reconstituição de uma época histórica específica a que as séries e os filmes ingleses do género nos habituaram. Só que, por outro lado, e como se padecesse de bipolaridade, a fita usa e abusa das liberdades dramáticas, manda a factualidade às malvas e chega mesmo ao ponto de reescrever a história para servir a pauta contemporânea que quer promover, a da denúncia da “opressão do patriarcado”, neste caso retroativamente para a era da dinastia Tudor.
[Veja o trailer de “O Jogo da Rainha”:]
Quem conhece um mínimo da história de Inglaterra e do reinado de Henrique VIII em especial, vai ficar de boca aberta com o tão delirante como aberrante final de O Jogo da Rainha. A autora do romance que o filme adapta, e as argumentistas Henrietta e Jessica Ashworth, parecem tê-lo concebido como uma compensação retroativa para a protagonista, Catherine Parr (Alicia Vikander), a sexta e última mulher de Henrique VIII (Jude Law), por ter sofrido às mãos deste. Aqui no final da vida, o rei está gordíssimo, com uma das pernas feridas e tão atingida pela gota que solta um cheiro insuportável — e de temperamento imprevisível: tanto é gentil para a rainha como a insulta, maltrata e ameaça (embora vários dos atos aqui apresentados sejam pura invenção).
[Veja uma entrevista com o realizador, Alicia Vikander e Jude Law:]
Mas para um filme que quer estar firmemente do lado da principal protagonista e evocar e realçar as suas muitas qualidades, O Jogo da Rainha fá-lo de forma muito tímida e pouco clara. Isto acaba por ser injusto para uma rainha sensata, piedosa, letrada e erudita (falava quatro línguas), que foi uma boa regente enquanto o marido estava em guerra em França, que se dava bem com os filhos do rei e os protegeu e defendeu os seus direitos em termos de sucessão junto de Henrique VIII e que foi a primeira mulher — e a primeira monarca inglesa — a publicar um livro com o seu nome em Inglaterra e em inglês, Prayers and Meditations, em 1545.
[Veja uma sequência do filme:]
Karim Aïnouz também não consegue sintetizar ou tornar minimamente percetível a complexidade e o significado das querelas religiosas entre a fação católica e a fação protestante na Inglaterra do final do reinado de Henrique VIII, bem como no interior da corte deste, nem as suas ramificações políticas, e nas quais Catherine Parr esteve envolvida. E Aïnouz é igualmente incapaz de extrair a devida intensidade emocional, tensão ou comoção dramática deste contexto de conflito em que O Jogo da Rainha se ambienta, deixando o espectador a boiar e a olhar para os cenários, para o guarda-roupa e para a perna cheia de pus do rei.
Contradizendo o título original do filme, Firebrand (incendiária, agitadora) e as intenções dos seus autores, a Catherine Parr de O Jogo da Rainha é uma mulher passiva e temerosa, o que encontra eco na interpretação mortiça de Alicia Vikander, compondo uma rainha distante e pouco reactiva ao que lhe acontece ao longo do enredo, quer às coisas verdadeiras, quer às ficcionais; e que só “acorda” no referido final fantasioso e deturpador. Apenas Jude Law num monstruoso, volátil e paranoico Henrique VIII traz alvoroço e perigo a uma fita que nem é sequer competente para cumprir com a agenda da atualidade que quis encaixar na Inglaterra do século XVI. O cinema não costuma ser bom professor de história, e ‘O Jogo da Rainha’ é um daqueles filmes feitos para os cábulas.