Publicado em Zurique há sete anos, também numa versão em língua inglesa, este álbum do designer britânico Jasper Morrison (1959-) está agora disponível em português — doze anos depois de, como o autor indica na página de abertura, ter visitado pela primeira vez as reservas do Museu Nacional de Etnologia para ver alfaias e outros objetos vernaculares, que ele esperava encontrar no Museu de Arte Popular, em Belém. Em novembro de 2013, certamente já com o espírito de fazer uma publicação, voltou ao Museu e — graças à “preseverança do meu amigo e colega designer Miguel Vieira Baptista” — conseguiu ser recebido (!) pelo diretor Joaquim Pais de Brito, que lhe mostrou novamente a coleção e, faz questão de deixar expresso, “em nada influímos na escolha de Jasper Morrison, que acompanhámos com o maior interesse” (p. 140). No termo duma campanha fotográfica de três dias, ocorrida pouco depois, só então descobriu que havia ainda «uma segunda reserva, cheia de mais outras centenas de objetos”, que, também eles, lhe revelaram “quanta beleza pode resultar da dificuldade e da necessidade” (p. 5), assim se explicando o título deste livro, Uma Vida Dura, que José Vegar considerou — com palavras bem medidas, que são o seu timbre — “uma das maiores homenagens alguma vez feita, e também um dos maiores milagres, à cultura e à sociedade portuguesa” (Jornal de Negócios, 26 de novembro de 2016). Morrison também publicou em 2016 um fanzine de 16 páginas em 300 cópias numeradas (Apartamento Publishing S.L., 10 €), com desenhos de sua mão feitos durante o processo fotográfico no Museu Nacional de Etnologia.
É muito facilmente compreensível o fascínio dum designer por estes objetos de uso que a antiga vida no campo e no mar criou, uma vez que eles sintetizam, e cito, “o que deveria ser o design, pensamento prático que resulta em algo excecionalmente útil, desempenhando um papel vital para que o quotidiano se torne mais rico e belo” (p. 8, comentando escudelas; sobre as quais afirma a sua surpresa por “ideia tão engenhosa não se ter difundido mais”). A propósito duma manteigueira oriunda de Bucos (Cabeceiras de Basto), diz Jaspers: “Quem a esculpiu tinha uma habilidade rara e intuitiva para a criação de formas” (p. 28). No total, o britânico escolheu, fotografou ele próprio e comentou c. 150 objetos portugueses de diferentes partes do país — é grande pena não haver um elenco alfabético e um índice geográfico —, incluindo um moinho de café e uma pedra de debulhar, ambos em basalto vulcânico, ou uma forquilha da ilha de São Miguel, uma colher estriada para manteiga do Caniço (Madeira), uma joeira de trigo de Cinco Ribeiras, na Terceira, ou um cesto de vime de Santa Maria.
Título: “Uma Vida Dura”
Autor: Jasper Morrison, em colaboração com o Museu Nacional de Etnologia
Design: Jasper Morrison, Lars Müller e Martina Mullis
Tradução: Ana Botas e Paulo Ferreira da Costa
Editor: Lars Müller Publishers
Apoio: EDP Energias de Portugal SA
Páginas: 208
Preço: 36 €
Mais e melhor design vernacular não poderia haver que os barbilhos de Estremoz, presos às narinas dos vitelos, que enquanto os impedem de mamar na vaca quando levantam a cabeça para tal, lhes permitem pastar e beber água, em movimentos descendentes e vasculares (pp. 122-23), ou as pequenas pintadeiras com extremidades decoradas que serviam para marcar e distinguir pãos e bolos cozidos em fornos comunitários do Alto Alentejo (pp. 34-35). Diz Morrison, encantado, creio: “A cintura [fina] permite um controlo suave, que, com as mãos enfarinhadas, ajudaria à pressão da pintadeira sobre a massa e ao descolamento desta”. Nos barbilhos para gado, “para evitar que pastasse na sua passagem por campos cultivados”, destaca o — “particularmente bem feito e cativante” (p. 120) — recolhido em Carreço, Viana do Castelo, pelos saudosos mestres etnólogos do Museu, contrapondo-o ao algarvio de Vila do Bispo, em corda, provavelmente “mais irritante” para a vaca ou o boi. Com uma “forma aprimorada ao longo dos anos”, a espadela de linho usada no Minho e em Trás-os-Montes, é elogiada como poucos, e veja-se a comparação: “atente-se no que o tempo e a necessidade conseguiram, pois talvez apenas um génio como o do designer Enzo Mari [1932-2020] pudesse alcançar esta forma, porém não sem muito batalhar!” (p. 110)… Atónito diante dum almofariz em forma de cálice com quase um metro de altura, reconhece na sua “forma admirável” parecenças com obras de Constantin Brâncuși (pp. 22-23).
À vista do mais comum fogareiro de barro para grelhar sardinhas ou carne ou assar castanhas, Jasper Morrison, considerado um dos grandes designers da atualidade, reconhece nele “um objeto desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de séculos”, “por tentativa e erro”, a ponto de dizer que «se soubesse onde adquiri-lo, eu próprio teria um” (p. 12)… E que diria até, mesmo que nada diga, da barquinha em cortiça para isco sempre fresco (60 cm de comprido) usada pelos pescadores da Ilha do Farol, Culatra (p. 148) ou do belo trilho cravejado de lascas de sílex (p. 182; fotos p. 141) que, sob o peso do camponês, ainda na década de 60 juntas de mulas ou bois puxavam em círculo nas eiras durienses cobertas de trigo? E o autor em 1997 dum livro sobre colheres do mundo inteiro deixa-se surpreender pela colher e garfo de pastor alentejano presos por argola, um conjunto “particularmente impressionante” esculpido a partir de “uma peça única de madeira” (p. 77), e logo depois, por uma outra colher de madeira, com pilão na ponta do cabo para esmagar sal, alhos e coentros para açordas — um prato alentejano que decerto apreciou, pois indica como se faz, e informa que “um ovo escalfado em cima é opcional”.
Tal e qual um arquiteto modernista que examina arquitetura vernacular em busca duma velha sabedoria de construir e habitar, também o designer contemporâneo pode descer às caves dum museu etnográfico e meditar demoradamente sobre forma, funcionalidade e ergonomia de foices, forquilhas, cutelos, espátulas ou navalhas de poda, ou avaliar quanto materiais locais em abundância e de fácil plasticidade (o barro e a cortiça, por exemplo) foram sendo utilizados em artefactos de uso quotidiano os mais variados, dos cântaros aos alguidares e jarros, desde os cochos e tarros dos pastores (pp. 74-75, 90-91) aos tropeços de assente junto ao lume das lareiras (pp. 194-99). O engenho popular não está apenas nas forquilhas para uso nas eiras imaginadas por observação de “formas desenvolvidas naturalmente”, como as duas da p. 174, está também, por exemplo, no cabaço para rega (Figueiró dos Vinhos, c. 147 cm; p. 179) fatiado num dos lados do corpo principal, também ele atravessado pela vara: “Senso comum, saber-fazer aliados a uma bela limpidez. Quanto à vara que atravessa o recipiente [dando-lhe estabilidade para a recolha da água], pode parecer um contrassenso, mas a água não se importa se ele está ou não lá”.
Jasper Morrison veio a Lisboa há uma década, e fez este livro admirável que nos honra mas também nos coloca, também ele, a pergunta essencial: quando é restabelecido, com a dignidade que merece, o Museu de Arte Popular, em Belém, e quando são dados meios para tornar — após a prolongada, planeada, quase criminosa tentativa interna de aniquilamento, que a demora na apresentação desta edição portuguesa, a todos os títulos escandalosa, também comprova — o Nacional de Etnologia um dos nossos museus-bandeira?