Uma das auditoras da KPMG alertou as autoridades em julho de 2014 que a recompra de obrigações pelo Grupo Espírito Santo (GES) poderia estar a gerar mais-valias que ficavam fora da esfera do GES devido à utilização de intermediários.

Ouvida pelo segundo dia consecutivo como testemunha no julgamento do processo BES/GES, no Juízo Central Criminal de Lisboa, Inês Viegas Neves realçou que se apercebeu de que estava em curso uma operação de recompra de obrigações que tinham sido emitidas já em 2014, com uma maturidade de 40 anos, e que o GES estava “a perder dinheiro”, o que não lhe fez sentido e que a convenceu de que era necessário investigar a situação.

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“Por que é que estou a comprar a valores muito superiores? Alguma coisa não estava a jogar e aquilo deixou-me a dúvida”, contou, notando que foi então contactada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), tendo-lhe sido transmitido que havia séries comerciais com veículos envolvidos com obrigação de recompra, que algo podia não estar bem na relação com os clientes e que a sociedade Eurofin estaria envolvida nestas transações.

Inês Viegas Neves disse que foi logo reunir-se com o BES e que explicou que recomprar as obrigações para perder dinheiro não fazia sentido, sobretudo num contexto em que havia várias instituições financeiras na Europa a obterem ganhos financeiros com operações semelhantes, uma vez que se livravam de encargos maiores ao longo do tempo com a dívida.

Contudo, o BES indicou que havia efetivamente cláusulas de recompra das obrigações com taxas e maturidades pré-definidas, pelo que Inês Viegas Neves enviou ainda nesse dia 21 de julho de 2014 um mail para o banco e para o administrador Joaquim Goes com pedidos de informação. No dia seguinte, seguiu com a sua equipa para o departamento de operações do BES para iniciar uma auditoria e comunica a situação ao Banco de Portugal (BdP) e à CMVM.

Mando então mail para Luís Costa Ferreira [então diretor do departamento de supervisão do BdP], em que reencaminho o mail que mandei para o BES, e concluo que podem ter sido feitas transações não no melhor interesse do banco e dos seus acionistas“, explicou.

E continuou: “Mandei também esse mail para Maria João Teixeira [da CMVM]. Mando um terceiro mail para Joaquim Goes a dizer que não sei se isto não serão transações a deixar uma mais-valia em terceiros para vir alimentar a conta ESCROW, que estava limitada pelo ring-fencing [estratégia do BdP para proteção do grupo financeiro face aos riscos emergentes do ramo não financeiro do GES]”.

Inês Viegas Neves relatou que as obrigações emitidas pelo BES eram colocadas em mercado primário pelo BES Vida e por outra entidade e depois compradas pelo ES Bank Panamá, que as revendia.

“Uma obrigação com valor nominal de 100 era colocada em mercado primário por 9. Vendia ao ES Bank Panamá por 9 e no mesmo dia este vendia aos clientes do BES por 25, 26 ou 27, gerando instantaneamente um ganho três vezes superior no ES Bank Panamá. O valor (total) era de 760 a 780 milhões de euros, um valor muito significativo. O ES Bank Panamá estava dentro da ESFG. Peço para me mandarem as contas e lá não estão mais-valias registadas… Se não estão no Panamá, onde estão?”, questionou.

Perante estas dúvidas, a então auditora da KPMG assumiu que “com estas operações se podia ter gerado num intermediário fora do grupo uma mais-valia de 700 milhões de euros” e que esse dinheiro poderia estar a ser usado para alimentar a conta da ESCROW. As informações levam a uma nova reunião no BES, na qual a diretora financeira Isabel Almeida lhe revelou que as transações tinham sido feitas pela Eurofin e usadas para pagar dívida do GES.