Os mais antigos devem lembrar-se do livro de Morris West As Sandálias do Pescador, publicado em 1963 e filmado em 1968 por Michael Anderson. Anthony Quinn interpreta o cardeal ucraniano Kiril Lakota, que é libertado de um campo do Gulag e eleito Papa após a morte inesperada do Sumo Pontífice vigente (West antecipou a eleição do primeiro Papa saído de um país comunista, o que só sucederia vários anos depois com João Paulo II). Após várias peripécias relacionadas com o tenso clima de Guerra Fria então vivido, a história acaba de forma implausível. O novo Papa anuncia que vai vender bens da Igreja, para acudir a uma China onde grassa a fome devido a um bloqueio comercial dos EUA e a uma querela com a União Soviética, que puseram o mundo à beira de um conflito nuclear.

A atmosfera de Conclave, do suíço Edward Berger (autor da mais recente — e medíocre — adaptação de A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque, na Netflix), baseado no livro homónimo de Robert Harris publicado em 2016, está mais próxima da de As Sandálias do Pescador do que dos muitos thrillers existentes que desenvolvem intrigas (invariavelmente delirantes) ambientadas no Vaticano, sobre conspirações ou tentativas de assassinato do Papa. E um dos principais pontos de contacto entre as duas fitas é que ambas têm um final tão inesperado como inverosímil, embora por razões e com intenções diversas, refletindo os tempos muito diferentes em que foram feitas.

[Veja o trailer de “Conclave”:]

Em Conclave, o Papa (um reformista, muito próximo da figura do atual Francisco, como podemos detetar por vários pormenores), morre de súbito. E deixa os seus mais próximos sob o efeito de revelações perturbadoras: os problemas de saúde que o afligiam e que manteve secretos para quase todos; o rumor da estranha nomeação de um cardeal in pectore (em segredo), um total desconhecido vindo de longe; ou as suspeitas de corrupção que pendem sobre um poderoso e influente cardeal americano da Cúria Romana. E, mais chocante que tudo, que o Papa teria perdido a fé. “Nunca em Deus, mas na Igreja”, como se apressa a esclarecer um dos sacerdotes do seu círculo mais íntimo.    

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É então convocado um Conclave para a eleição de um novo Papa, coordenado pelo Cardeal Lawrence (um sóbrio Ralph Fiennes), homem conciliador, discreto e diplomático, mas cansado do ambiente e das intrigas do Vaticano, ao qual o defunto líder da Igreja Católica tinha recusado o pedido de se afastar de Roma para ir ter uma existência de estudo e contemplação. Chegam mais de 100 cardeais de toda a parte, e ficam fechados e cortados do mundo até chegarem a consenso sobre um candidato. Conclave é um huis clos à maneira do policial clássico. Só que em vez de descobrir o assassino, há que adivinhar quem será o próximo Papa.

[Veja uma entrevista com o realizador e com Ralph Fiennes:]

Não faltam candidatos. Há o caricaturalmente ultra-conservador e “duro” Cardeal Tedesco (o sempre excelente Sergio Castellitto), o impaciente esquerdista Cardeal Bellini (Stanley Tucci), o africano Adeyemi (Lucian Msamati), que nem por vir de onde vem o enredo admite que seja eleito, por execrar os homossexuais e ter cometido um grave pecado quando era novo, ou o maquiavélico Cardeal Tremblay (John Lithgow). Lawrence, que apoia Bellini sem muita convicção, não deseja ser Papa, mas mesmo assim há quem vote nele. (Quem já anda nisto dos filmes há muito tempo perceberá, bem cedo e mesmo sem ter lido o livro, quem é que vai acabar por ocupar a cadeira de São Pedro – mas nada de spoilers).

Conclave é razoavelmente interessante na descrição do funcionamento do Conclave e na apresentação das fações em confronto, e das movimentações, acordos e jogos políticos de bastidores para a escolha de um candidato que obtenha uma maioria e seja eleito Papa. Embora o enredo abunde em lugares-comuns e facilidades descaradas (por exemplo, entra-se no quarto selado mas sem vigilância onde o Papa morreu com toda a descontração, e um documento essencial ao esclarecimento da história está convenientemente mal escondido, por exemplo), e a maior parte das personagens seja feita de cartão e cola, mesmo a única feminina, a Irmã Agnes de Isabella Rossellini).

[Veja uma sequência do filme:]

Além disso, o filme, tal como o livro que adapta, tem um viés anti-católico mal oculto por um verniz de consideração pela Igreja enquanto instituição milenar que necessita de “reformas”, e é um “wishful thinking” anti-tradicionalista e “progressista”, uma fantasia de miolo politicamente correto sobre o que deveria ser o futuro da Igreja Católica segundo os bem-pensantes. Basta ouvir o amontoado de banalidades fofinhas e sensaborias piedosas que passa por um discurso profundo, que o Cardeal Benitez (Carlos Diehz) profere após o atentado dos terroristas islâmicos em Roma e que, como alguém notou numa crítica, parece “escrito pelo ChatGPT”.

O absurdo twist final, após uma votação em atmosfera grave e que nem lembraria a um M. Night Shyamalan, é a cereja no topo do bolo da ideologia que enforma Conclave, uma forma pseudo-irónica de contrariar e contornar a doutrina oficial da Igreja Católica sobre o papel reservado às mulheres. Só que o efeito é tão desconcertante como ridículo, e acaba com a pouca plausibilidade que a história já tem por essa altura.