Quando me foi sugerido que escrevesse sobre Blitz, o filme que estreia esta sexta-feira, 22 de novembro na Apple TV+, só foi preciso dizer “é o filme novo do Steve McQueen”. Bati o meu martelo de leilão imaginário e disse “Vendido a Susana Verde”. Desculpem, tenho que aproveitar agora para usar um pouco do humor que me caracteriza, porque quando entrar no filme propriamente dito, vai haver pouco ou nenhum espaço para a galhofa. Voltando ao convite e à minha resposta imediata: o realizador Steve McQueen foi oscarizado pelo duríssimo 12 Anos Escravo, mas entrou para a minha galeria dos notáveis uns anos antes. E não me estou a armar em hipster, até porque nunca fui a um concerto de Capitão Fausto, não compro roupa na Humana e não uso bigode. Pelo menos, não de forma intencional.
O realizador londrino conquistou-me com o biopic Fome sobre um grupo de presos, membros do IRA, que fazem greve da dita. Belíssimo filme. Perturbador. E logo a seguir, sedimentou essa opinião com Vergonha, protagonizado por Michael Fassbender à semelhança do filme anteriormente referido. Mais uma vez com uma prestação irrepreensível, sendo que aqui dá o corpo ao manifesto doutra maneira, na medida em que interpreta um adicto ao sexo. E sim, é o Fassbender conhecido no nosso país por, ele sim, ser um quase hipster no que diz respeito ao movimento de gentrificação lisboeta. O ator comprou casa em 2018 na nossa capital, anteriormente também conhecida como “Lisboa, Menina e Moça”, hoje como “Lisbon, Girlie e Baddie”.
[o trailer de “Blitz”:]
Blitz passa-se em plena Segunda Guerra Mundial, (em 1940, mais exatamente) quando o Reino Unido foi vítima de uma campanha de bombardeamento massivo por parte dos nazis, sendo Londres um alvo especialmente fustigado, cidade onde vive a família protagonista. Não sendo baseado numa história verídica, McQueen, que também assina o argumento, fez uma extensa pesquisa sobre os eventos e garante que histórias muito semelhantes a estas tiveram lugar à data. A mãe Rita é interpretada pela quase incandescente de luminosa Saoirse Ronan, vive com o pai Gerald, interpretado por Paul Weller, que antes de ser ator é músico (The Jam, Style Council e em valente nome próprio), o que faz perfeito sentido. Este avô recorre ao piano para afastar os terrores da guerra que ensombram a infância do neto George, o estreante e amoroso-que-dói Elliott Heffernan.
Com a blitz a intensificar, Rita vê-se forçada, à semelhança de tantas outras mães, a entregar o filho aos cuidados do governo para que seja evacuado para a zona rural do país, que não estava a ser fustigada pela ofensiva alemã. A mãe não queria, o filho não queria, mas o que tem que ser tem muita força, e Rita abraça-se no cais da estação a um revoltado George que se despede com um “Eu odeio-te”. Isto acontece aí pelos 15 minutos. E porque é que eu tenho este marco temporal tão presente? Porque foi aí que chorei pela primeira vez a ver Blitz e pensei “Tá boa! Um quarto de hora e já estamos nisto? Será que estou grávida?” Não estou, estou só velha e lamechas.
Num misto de medo, raiva, culpa e saudade, o nosso pequeno protagonista salta do comboio em andamento ao fim de uma hora de caminho, coisa que me provocou o primeiro pico de ansiedade da película, porque sou mãe e só o processo dos meus filhos atravessarem a estrada sozinhos foi uma luta para mim, quanto mais. A partir daqui, acompanhamos a epopeica viagem de George, que só quer voltar para o colo da mãe. Uma criança a atravessar um território em pelo conflito, testemunha na primeira pessoa que a guerra pode trazer à tona o melhor das pessoas, quando as une num propósito de resistência e sobrevivência. Mas também pode reduzir a empatia, a dignidade e o respeito pelo outro a pó, porque vamos todos morrer mesmo, é safarmo-nos enquanto há.
Enquanto isso, a mãe Rita trabalha numa fábrica de armamento, onde as mulheres se unem, se apoiam e cantam. Porque a música também salva. Aproveito para referir outro momento, em que vemos crianças e adultos num abrigo subterrâneo, enquanto à superfície rebentam bombas, a assistir a um espectáculo de fantoches, em que uma das personagens é o Hitler e a outra ridiculariza-o com trocadilhos, dá-lhe traulitadas na mona e põe a assistência a gargalhar. Permitam-me a repetição para efeitos enfáticos, num abrigo subterrâneo, enquanto à superfície rebentam bombas. Não sei se o humor salva, mas tenho a certeza que o riso ajuda.
Não querendo avançar mais, para não ser spoiler, o pai de George não está presente na vida do filho, mas a sua herança é incontornável: a cor. E vamos assistir (com indignação e dor, espero) aos primeiros contactos de uma criança com o racismo. E espero que alguns percebam melhor nos olhos daquela criança o efeito que representações de seus semelhantes em situação de escravidão (às vezes até emolduradas em talha dourada em instituições públicas) produzem no espírito de alguém. Ainda nesta nota, destacar o papel de Ife, interpretado pelo extraordinário Benjamin Clementine, que a determinada altura será um anjo na vida do pequeno George, um exemplo positivo de representatividade e a prova acabada de que nem estando no mesmo lado da trincheira, o racismo suspende trabalhos.
Não posso deixar de partilhar um concerto dos Gorillaz que vi em Bilbao há uns anos, em que Clementine sobe a palco para cantar Hallelujah Money com uma gabardine branca muito comprida como o próprio (qual anjo, lá está), cujo refrão é “When the morning comes / We are still human / How will we know? / How will we dream? / How will we love? / How will we know?”
A realização e a fotografia são um primor, a edição de som coloca-nos em território de guerra com aquele constante assobio a vir dos céus, que não deixa esquecer que a morte está à espreita, e a música do Hans Zimmer é a música do Hans Zimmer, não é preciso dizer mais nada. McQueen vai-nos mostrando a vivência em guerra, entre o terror e a normalidade, o desespero e a esperança, a empatia e a apatia relativamente ao sofrimento do outro. Como as coisa materiais passam a nada, quando a sobrevivência dos que amos está em causa e como para alguns o vil metal nunca deixa de ser o que faz o mundo girar, mesmo que este pareça estar perto do fim. McQueen disse numa entrevista que escolheu uma criança como protagonista para que fosse “uma página em branco” para mostrar a “perversidade” da guerra. Porque a violência contra as crianças é mais difícil de ignorar, segundo o realizador. À data de hoje, parece-me seguro dizer que pode ser mais difícil, mas não tem sido impossível.
Há um plano que achei particularmente poderoso em que vemos uma casa de dois andares, recém-bombardeada, sem teto e sem fachada. No andar de cima, uma mulher idosa varre o chão. No andar de baixo, o marido olha para a rua, como se ainda houvesse uma parede e uma janela ali. Não estaremos nós a ignorar que a casa já caiu, a varrer a desumanidade para debaixo de um tapete já corroído? Eu incluída, a fazer graçolas, opiniões jocosas, já de olhos postos no próximo entretenimento, enquanto a barbárie acontece outra vez? O filme começa a negro, com frases a branco que nos dão o contexto histórico da ação. “1.25 milhões de pessoas foram retiradas de cidades bombardeadas para áreas mais seguras. Mais de metade eram crianças.” E não vou mentir, a sombra das crianças vítimas de bombardeamento, tanto em 1940 como em 2024, acompanhou-me durante todo o filme. Tal como as crianças como George que, 84 anos depois, ouvem da boca de outros miúdos: “Black Bastard!”.