Manuel Carneiro (1871-1956) e Arcelino de Azevedo (1913-1972) foram dois importantes fotógrafos nascidos e ativos em Braga, cujos relevantes arquivos foram integrados em 1980 e 1982 na fototeca do Museu Nogueira da Silva graças aos bons ofícios da Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural (ASPA). Os quarenta e dois anos que os separam no nascimento correspondem a diferentes meios de fotografar, e a novos contextos urbanos também, pelo que — como bem pensou Duarte Belo, comissário da exposição de que este livro é uma síntese — a ideia de os juntar e confrontar confere a esta Na Sublimação do Tempo uma abordagem mais estimulante e dinâmica do que qualquer exposição individual, aliás já realizada quer para um quer para outro, naquele mesmo museu e não só, seja em 2009, seja em 1985 e 2009, respetivamente. E o facto de Belo ser, também ele, um fotógrafo com notórias inclinações geográficas (ou, para dizer ao modo deste tempo, paisagísticas) atribui a esta escolha de imagens — e a leitura que delas faz em comentários breves — um interesse adicional, senão uma curiosidade desafiante.

Todavia, à exceção de muito poucas, as imagens não estão datadas nem há sobre elas informações históricas específicas, que se julgaria indispensáveis, por exemplo: quanto ao motivo da rua barricada com grandes pedras junto ao Largo de São Francisco, na p. 78; ao colapso parcial do monumento votivo — aliás, não está sequer identificado — no Largo das Carvalheiras, por queda de árvores próximas, na p. 68; ou ao incrível aluvião de gente na peregrinação em “local desconhecido” (sic) da dupla página 196-97 (questões que pesquisas a fundo nos jornais da época certamente lograriam esclarecer). Até mesmo a estátua do rei D. Pedro V, em destaque na imagem da p. 76 (também presente nas pp. 40, 41 e 42), não é identificada enquanto tal, nem é reportada a sua transferência para o Campo Novo em 1915 (sendo-lhe, portanto, anteriores aquelas fotografias de Manuel Carneiro).

De resto, também o cruzeiro em destaque da página seguinte foi deslocado nessa mesma data, de outro ponto da Avenida Central para o Largo da Senhora-a-Branca (está fotografado por Manuel Carneiro na p. 77), embora, sem que nada nos avise disso, apareça ali mesmo num espaço entretanto ajardinado tal como Arcelino de Azevedo o registará anos depois (v. p. 50). E a estátua de homenagem ao marechal Manuel Gomes da Costa, na Praça do Pópulo, inaugurada em 1966, que surge bem visível na fotografia de Arcelino da p. 115 — e repare-se que, pelo aparato da cena, se diria tratar-se da própria cerimónia de inauguração… —, não é mencionada na respetiva legenda. Já o belo chafariz-fontanário na Rua Andrade Corvo (p. 146) havia sido trasladado da proximidade do Solar das Ínfias, representado na p. 132 como Casa de Vale de Flores, nome pelo qual também é conhecido. Para a história urbana — ou, como diz o título, para a sublimação do tempo —, estas coisas não são de somenos. Uma cidade, bem vistas as coisas, também é feita destes deslocamentos, arranjos e reaproveitamentos, que merecem melhor atenção, sobretudo quando se juntam dois fotógrafos ativos em décadas já algo distantes. Onde estão — cabe então perguntar — os historiadores bracarenses quando precisamos deles? E no Museu Nogueira da Silva, não há equipas multidisciplinares para tratar e estudar os fundos em arquivo, como convém que eles sejam tratados?


Título: “Na Sublimação do Tempo. Braga nos arquivos fotográficos de Carneiro e Arcelino”
Autores: António Gonçalves, Duarte Belo, Miguel Melo Bandeira e Nuno Borges de Araújo
Editor: Documenta e Museu Nogueira da Silva / UM 
Páginas: 223

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Quer Carneiro quer Azevedo foram lojistas de fotografia e produtores exclusivos, em épocas distintas, de postais-fotográficos da cidade de Braga e seus arredores (há, por exemplo, uma bela fotografia do Mosteiro de Tibães e do seu cruzeiro, a 8 km; Arcelino, p. 178), o que decidiu claramente grande parte dos motivos escolhidos e a incidência sobre o que hoje chamamos centro histórico, “corpo profano pontuado pelo sagrado” (p. 60), como sabemos ali tão marcado por igrejas centenárias (“inúmeras”, p. 100), capelas, torres medievais (que aqui e ali espreitam sobre a linha do horizonte urbano), velhas praças (ou “campos” extra-muros) e um ou outro edifício palaciano ou distintivo, como os carismáticos Palácio do Raio ou a Casa dos Crivos (Arcelino, pp. 135 e 82) e o palacete dos Condes de Carcavelos ou o Palácio dos Biscainhos (Carneiro, pp. 129 e 126, 128, 143; Arcelino, pp. 144-45). O Arco da Porta Nova não foi esquecido, desde o tempo em que era atravessado por um carro elétrico (pp. 69, 137, 138, 139) até depois não (p. 140).

Tanto um como o outro, Carneiro e Arcelino subiram a varandas de primeiro piso, a terceiros andares ou até mesmo, parece, a uma árvore e a telhados ou torres, para conseguirem vistas panorâmicas mais abrangentes, ou contemporizaram com curiosos de todas as idades, géneros e condições, que a morosidade dos equipamentos fotográficos daqueles tempos tornou figurantes voluntários de vistas urbanas praticamente despidas de gente — muito ao contrário do portofólio final, “Sociedade”, que exibe um sortido de feiras de rua (impressiona a feira da lenha, na Praça do Conde de Agrolongo; pp. 184-85, 194), cortejos, um desfile de banda militar e, claro está, as festas do São João e as da Semana Santa, as duas principais celebrações da cidade de Braga, em que “as pessoas começam a ganhar o primeiro plano” e o “destaque fotográfico” (Melo Bandeira, p. 15).

Uma peregrinação ao Sameiro num dia de muita chuva deu a Manuel Carneiro a oportunidade de uma das suas melhores fotografias (p. 195), e creio que Duarte Belo fotógrafo não desdenharia assinar a imagem da Estátua de Longuinhos, no Bom Jesus, p. 155, ou, mais ainda, as da Fonte do Ídolo, nas pp. 147-49, ou o chafariz da autodesignada Avenida da República, pp. 51, 53, 58-59, pelo qual manifesta considerável apreço. Os dois fotógrafos bracarenses, a avaliar pelas fotografias escolhidas, rara ou pouca atenção deram a interiores de igrejas (e, verdade seja dita, motivos não lhes faltariam), talvez pela exigência técnica envolvida, porém Arcelino de Azevedo deixou-nos duas excelentes imagens do jogo de luz e sombra da galilé da Sé (pp. 27, 29), uma das quais serviu para o cartaz da exposição no Museu Nogueira da Silva.

Nas ampliações fotográficas em exibição, mais do que nas páginas deste livro, é possível animarmo-nos na observação dos tipos humanos em movimento na cidade, das vendedoras ambulantes sentadas na borda dos passeios à espera de clientes (p. 79), ao homem que atravessa uma praça de longa escada a tiracolo (p. 105), às inúmeras mulheres com trouxas de roupa à cabeça, ao polícia sinaleiro debaixo de conveniente guarda-sol (p. 75), aos que carregam cestos de vime e sacas de sarapilheira no tejadilho de camionetas de carreira para as aldeias (pp. 200-201), aos carros de carga puxados por bois chifrudos (pp. 95, 96), ao homem a cavalo pelo Campo das Hortas (p. 139) — até às incontáveis figuras das feiras nas pp. 191-94, na exuberância das situações as mais variadas, à procissão escolhida para a capa e à mulher da louça preta de Molelos à porta da Sé, na p. 106. Mas também os antigos quiosques de refrescos nas praças, e sobretudo a “cidade tipografada” nos seus belos dísticos comerciais de inícios do século XX, do Café Central Manuel António Esteves e da Casa do Antigo Cachapuz, no centro (p. 78), ao Grande Hotel, no Bom Jesus do Monte, com as letras do nome pintadas entre janelas e quase do tamanho delas (p. 157).

Uma cidade velha em mudança, por certo, que a crescente mobilidade automóvel e a construção de novos bairros e grandes infra-estruturas comerciais haveriam de perturbar inexoravelmente. Mas também a estimular novos e atuais inquéritos fotográficos, como aquele que Alfredo Cunha lhe dedicou em 2022, Rua do Anjo: Braga 1996-2021, e que aqui tivemos ocasião de comentar, muito atempadamente.