“Amei-o. Ele era o meu porto seguro. Acredito mesmo que, se não o tivesse conhecido, tinha morrido em nova. Os meus problemas vieram depois. Quando ele começou a escrever sobre mim.” A revelação feita por Augusta Britt tem abalado os alicerces do mundo literário e voltou a colocar no centro da discussão um dos maiores autores norte-americanos da segunda metade do século XX.
Em causa está a história publicada recentemente pela revista Vanity Fair, de que Britt, até aqui desconhecida do grande público, viveu um romance com o autor Cormac McCarthy e foi durante décadas a sua grande “musa inspiradora”, responsável por várias das personagens e temáticas recorrentes da obra de McCarthy, numa relação que terá começado em meados da década de 70 quando ela teria apenas 16 anos. Já o autor de Meridiano de Sangue e A Estrada teria 44.
Ao longo do extenso artigo, Britt, hoje com 64 anos, faz ainda uma série de outras revelações, incluindo a de que o escritor terá fugido com Augusta Britta para o México e forjado a data de nascimento para escapar às autoridades, que alegadamente estariam à sua procura pelo crime de abuso de menores. Ainda que vários detalhes da história estejam por confirmar, a veracidade da natureza da relação é corroborada por uma série de pessoas próximas de McCarthy, que durante décadas mantiveram segredo por forma a não prejudicar a sua reputação, bem como por dezenas de cartas enviadas pelo próprio a Augusta Britt e que esta manteve ao longo de décadas, muitas com conteúdo sexual explícito e escritas quando era ainda adolescente.
O caso está a gerar um intenso debate no meio literário e cultural dos Estados Unidos. Vários observadores e colunistas têm defendido que as revelações devem causar reflexão sobre o lugar de Cormac McCarthy, que morreu em 2023, na história da literatura norte-americana. Alguns professores universitários já afirmaram mesmo que deixarão de lecionar em plataformas públicas a obra do escritor, descrevendo o caso como “indefensável” (Britt, pela sua parte, garante que a relação foi sempre consensual), havendo até criticas à própria Vanity Fair e ao autor do texto, um jovem freelancer de perfil desconhecido até agora, pelo tratamento dado à história.
Ao mesmo tempo, académicos e biógrafos têm mostrado publicamente algum ceticismo quanto à influência de Britt na obra de McCarthy — isto numa altura em que a Universidade Estatal do Texas se prepara para tornar pública em 2025 uma parte significativa do arquivo pessoal do autor, que promete trazer novas revelações sobre esta história com mais de 40 anos, que começa agora a ser contada.
Uma musa adolescente de revólver à cintura
A descoberta desta história terá começado por um acaso, quando Vincenzo Barney, um jovem autor e jornalista freelancer e admirador confesso do autor da Trilogia da Fronteira, publicou uma análise critica das suas duas últimas obras publicadas em vida, O Passageiro e Stella Maris (publicadas em Portugal em 2022 pela Relógio d’Água) na sua página na plataforma de conteúdos Substack.
“Trabalhei durante meses numa crítica [dos livros]”, contou o jornalista em entrevista ao site Slate. “Publiquei-a no dia 1 de abril e o meu maior sonho do Dia das Mentiras tornou-se realidade: a Augusta descobriu-me e confiou em mim para contar a sua história ao mundo.”
História essa que, ao longo dos anos, Augusta Britt terá rejeitado por diversas vezes contar, perante a insistência de biógrafos e investigadores. A relutância em fazê-lo, segundo a própria, devia-se por um lado à natureza intensamente privada do autor, conhecido por raramente dar entrevistas e por manter resguardada a sua vida pessoal e, ao mesmo tempo, devido ao medo que a relação entre os dois não fosse compreendida pelo público. “Ele já cá não está para se defender. A verdade é que me ele me salvou a vida”, diz Britt citada pela Vanity Fair.
A história entre ambos terá começado com um fortuito encontro numa piscina de motel em Tucson, no Arizona, em 1976. “Achei que ele me parecia familiar, mas não pude precisar de onde. Quando voltei para a casa onde estava, percebi que o homem na piscina era o homem na fotografia de autor na contracapa do livro que estava a ler, O Guarda do Pomar”, o romance de estreia de McCarthy, publicado originalmente em 1965.
No dia seguinte, regressou à piscina do motel na esperança de encontrar o autor para que este lhe assinasse o livro. McCarthy estava lá e autografou a cópia. Ao fazê-lo, reparou que a jovem de 16 anos trazia à cintura um revólver Colt. Questionada sobre o porquê de estar armada, Britt revelou que era vítima de abusos desde a infância, passada entre o cuidado dos pais negligentes e várias instituições e famílias de acolhimento que a maltratavam. “[A certa altura] decidi que nunca mais me iam bater. Que ia disparar sobre quem tentasse”, recorda.
Ao longo das semanas e meses que se seguiram, os dois terão mantido contacto por telefone e correspondência, com McCarthy a fazer várias viagens a Tucson para a ver. Segundo Britt, a curiosidade do escritor pela sua história de vida rapidamente deu lugar a um romance e a uma influência decisiva nos trabalhos que se seguiram. De acordo com Barney, serão pelo menos 10 as obras, entre a literatura e o cinema, e dezenas de personagens que contêm referências mais ou menos diretas à vida de Augusta.
Eventualmente, após mais um episódio de violência, McCarthy terá decidido abandonar os EUA com a sua “musa” rumo ao México, motivado em parte pelo facto de o FBI o estar a investigar por abuso e solicitação sexual da menor (a fuga acabaria por fazer parte do enredo de Cavalos Bonitos, o primeiro livro na Trilogia da Fronteira). Para tal, terá mesmo forjado um documento de identificação para que Britt passasse por maior de idade e pudesse sair com ele do país. Os dois acabariam por ficar no país até a jovem completar 18 anos (foi também no México que terão tido relações sexuais pela primeira vez).
Britt admite, que nos anos se seguiram se sentiu incomodada com o facto de servir de “inspiração” a McCarthy. “Senti-me algo violada. Todas estas experiências dolorosas que eram minhas, regurgitadas e reconstruídas em ficção. Não sabia como falar com o Cormac sobre isto porque ele era a pessoa mais importante da minha vida. Pensei se era só aquilo para ele, uma pessoa desequilibrada sobre a qual ele podia escrever”.
Pese embora a natureza ilegal da relação e a diferença de 28 anos entre os dois, Augusta Britt garante que a relação foi sempre consensual e que não se considera uma vítima. Descrevendo Cormac McCarthy como um “protetor” e “o homem da sua vida”, a “musa” viria a separar-se do seu autor alguns anos mais tarde, mas os dois continuaram em contanto regular nas décadas que se seguiram e até à morte de McCarthy aos 89 anos, e Augusta foi um dos nomes que constou no seu testamento.
A surpresa do mundo literário e o ceticismo dos biógrafos
Se a história de Augusta Britt foi recebida com choque por muitos dos leitores que tinham McCarthy como referência máxima da literatura norte-americana do último meio século, o mesmo não pode ser dito pelo círculo íntimo do autor. Laurence Gonzales, amigo de longa data e o seu biógrafo oficial, afirmou ao New York Times que “todos sabiam da Augusta, mas mantiveram segredo. (…) Eles conheceram-se quando ela era tão nova, uma criança abusada que tinha fugido de casa, e o Cormac estava na casa dos 40. Era uma situação que ficaria mal vista de várias formas”.
A presença de Augusta Britt na correspondência de McCarthy e dos seus amigos e colegas do meio literário é corroborada por biógrafos e investigadores que estudam a vida e obra do autor, e para quem a existência desta amante secreta era conhecida. Por outro lado, os especialistas admitem não estar convencidos quanto à alegada extensão da influência de Britt na obra de McCarthy. “Do meu ponto de vista, há algumas coisas muito esticadas [no texto da Vanity Fair]”, afirmou o investigador e professor universitário Bryan Giemza. “Não me parece que seja assim que a imaginação de um artista funciona. O mais certo é que todas essas personagens sejam compostas de várias pessoas.”
Opinião semelhante tem Paulo Faria, escritor e tradutor da obra literária de Cormac McCarthy para a língua portuguesa. “Devo dizer que um bom escritor, e Cormac McCarthy foi um grande escritor, não baseia nenhuma personagem numa só pessoa. Todas as personagens são compósitos. Não deixa de ser belo, porém, ver alguém rever-se em tantas personagens de Cormac McCarthy e sentir que as inspirou”, diz o tradutor em declarações ao Observador.
A polémica tem-se estendido também à ausência de fact-checking por parte da Vanity Fair a algumas das alegações feitas por Augusta Britt, bem como ao tratamento editorial dado à história. “[Vincenzo] Barney parece tratar o interesse pederasta de Cormac McCarthy numa adolescente vulnerável como uma grande história de amor”, escreveu o jornalista britânico Liam Kelly num artigo de opinião no The Telegraph. Barney, por sua vez, tem-se defendido das críticas e revelou até estar a trabalhar num livro sobre a história de Augusta Britt e Cormac McCarthy.
O debate tem-se centrado sobretudo na forma como estas revelações poderão afetar o legado do autor e o seu lugar entre os maiores nomes da literatura norte-americana. “Há alguma preocupação (da comunidade académica) sobre como tudo isto pode afetar a sua reputação de uma forma algo reacionária”, disse ao New York Times a investigadora Dianne C. Luce. “A nossa esperança é que a qualidade da obra impeça que tal aconteça”.
Contudo, na última semana têm-se multiplicado as críticas ao autor, havendo até quem já repense o ensino do seu trabalho. Na rede social X, Aaron Gwyn, professor da Universidade da Carolina do Norte, que já deu várias aulas e palestras públicas acerca de Cormac McCarthy, anunciou que iria deixar de destacar o autor nos seus conteúdos em plataformas públicas como o YouTube ou o Substack.
O tradutor português de McCarthy coloca-se firmemente de um dos lados da barricada. “Para apreciar Meridiano de Sangue ou A Estrada, nada preciso saber acerca de Cormac McCarthy. (…) Agora que morreu, muitas pessoas que o conheceram mais ou menos intimamente virão contar as suas histórias. Não me interessam especialmente estas ‘revelações’ mais ou menos ‘bombásticas’. Fazem-me aliás muita impressão certas indiscrições, agora que o próprio já não está entre nós. O que interessa está nos livros de Cormac McCarthy. O resto é poeira que irá rapidamente assentar.”
Para já, a única certeza parece ser a de que o debate irá continuar. Alheia a todas estas questões, Augusta Britt garante que vai lutar publicamente para preservar a memória do romance com McCarthy e do seu lugar na sua literatura. Seria, aliás, o que o próprio queria. “O Cormac sempre quis que contasse a minha história. Dizia-me, ‘um dia alguém vai fazê-lo; mais vale que sejas tu’”.