De Espanha chegou a notícia este fim de semana de que Pedro Sánchez foi reeleito líder do PSOE com 90% dos votos. No entanto, a união do partido em torno do atual presidente do governo espanhol não se refletiu noutras questões abordadas no 41.º congresso dos socialistas espanhóis, realizado em Sevilha. Uma série de alterações à linha política do partido no que toca à igualdade de direitos e liberdades fez estalar a controvérsia não só no interior do conclave, mas também junto dos parceiros de governo.

Sánchez é reeleito líder do PSOE com 90% dos votos e anuncia criação de empresa pública de habitação

Em causa estão as propostas de alteração ao documento-quadro do PSOE — entretanto aprovadas na noite de sábado, 30 de novembro — para que o partido deixe de usar a sigla “LGBTQI+” ou “LGBTI+” quando aborda direitos das minorias sexuais, passando a referir-se às mesmas apenas como “LGBTI”. Desta forma, cai o “Q” de “Queer” ou “Questioning” (“A questionar-se”) — referente às pessoas que não se sintam incluídas pelas categorias da restante sigla, como não-binários — e o “+” — que inclui outras orientações, como pessoas pansexuais ou assexuais.

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Além disso, como adianta o El País, foi também aprovada uma moção relativa à polémica relacionada com a inclusão de pessoas transgénero em competições desportivas, com uma delegação oriunda de Guadalajara a fazer aprovar que “nenhuma pessoa do sexo masculino possa participar nas categorias destinadas às mulheres”.

Tais mudanças refletem discussões já antigas no seio do PSOE, especialmente quanto à divisão entre as “feministas clássicas” do partido e os setores mais progressistas e ligados aos parceiros de coligação do Sumar. Segundo noticia o El Mundo, estas aprovações representam uma vitória para a fação das “clássicas” socialistas — mais conservadoras no que toca aos direitos de minorias sexuais — na orientação ideológica que o partido seguirá de futuro.

Já em relação à sigla na comunicação política dos socialistas, a norma — seguida tanto pelo PSOE como pelo governo espanhol — era utilizar LGBTI+, sendo que raramente era usada a consoante “Q”. O secretário-geral do partido para os direitos LGBTI, Víctor Gutiérrez, citado pelo El País, explicitou que “o que surgiu no debate sobre o documento foi a questão de deixar ou não o + em LGTBI+, o Q não teve nada a ver com isso”.

“O governo e a direção-geral usam o + [LGTBI+], por isso quisemos alinhar a nomenclatura do partido com a do governo, mas na votação saiu contra”, admite. Apesar de várias fontes do partido defenderem que esta mudança não reflete “a maioria do PSOE”, a fação minoritária encabeçada por Carmen Calvo — atual presidente do Conselho de Estado espanhol — organizou-se bem e levou a sua avante, adiantaram fontes socialistas ao El País. Depois da votação, foram ouvidos no congresso aplausos e gritos de “viva a luta das mulheres”.

Ao mesmo jornal, Sonia Lamas, da fação das socialistas feministas, falou numa questão de “coerência”. “O Q do queerismo defende a exploração reprodutiva e a prostituição como trabalho, e isso é contrário aos princípios socialistas, abolicionistas da prostituição e da barriga de aluguer. E o + é algo indefinido que também pode gerar indefinição jurídica”, defendeu.

Mulheres trans, aliadas ou um “estorvo” para o PSOE?

A renúncia à sigla LGBTQI+ — que, de resto, é a oficialmente utilizada pela ONU — foi apenas uma de várias alterações aprovadas pelas feministas socialistas. De entre centenas de propostas, conseguiram também fazer passar uma norma que dita a expulsão de militantes que recorram a serviços de prostituição e outra que formaliza a oposição do partido à prática das barrigas de aluguer.

No entanto, outra das que causaram mais polémica refere-se aos direitos trans. A medida em causa faz com que o PSOE se oponha oficialmente à participação de mulheres transgénero em competições desportivas femininas, considerando-as tacitamente como homens biológicos. Isso fica patente no argumento de que tais participantes têm “as vantagens competitivas dos homens devido ao efeito de se terem desenvolvido com testosterona”.

Esta aprovação mereceu condenação imediata por parte do Sumar e de Irene Montero — atual eurodeputada e ex-ministra da Igualdade do governo de Sanchéz. Montero disse num vídeo publicado na sua conta do X que “esta coisa do PSOE não é feminismo clássico, é transfobia”, considerando que “as mulheres trans são mulheres e que os direitos trans são direitos humanos” e que tal medida “serve de desculpa para aplicarmos a transfobia noutras áreas da vida”.

A associação Contra o Apagamento das Mulheres, opositora à participação de mulheres trans em competições femininas, reagiu a Montero, considerando tal prática “jogo sujo” e que a ministra defende “que um homem, com vantagens competitivas derivadas de ter um corpo desenvolvido com testosterona, leve os recordes femininos”.

Já antes disso, o Sumar alertou na mesma rede social que “a luta pelos direitos não pode deixar ninguém para trás”  e que “não se combate a extrema-direita com as ideias da extrema-direita”.

A porta-voz da coligação, a escritora Elizabeth Duval — ela própria uma mulher trans —, também denunciou no X o que considerou ser um sinal político por parte do PSOE. Referindo-se à alteração da sigla para LGBTI, Duval afirma que isso “não se trata de um conflito sobre colocar ou não uma letra”, mas sim “até onde um partido acredita que os direitos fundamentais de uma minoria podem ir”, afirmando que tal ação demonstra que, para o PSOE, as mulheres trans são “um estorvo”.

A questão dos direitos transgénero é já um cisma antigo nas hostes socialistas, especialmente após a aprovação da “Lei Trans” em 2023, que estipula que jovens entre os 12 e 14 anos podem mudar de género com a autorização de um juiz, entre os 14 e os 16 com a autorização dos pais e partir dos 16 não precisam de nenhum aval.

Como recorda o El País, tal lei foi aprovada sem o apoio das feministas socialistas, partindo do facto de Pedro Sánchez ter dado ao Unidas Podemos (que entretanto integrou a coligação Sumar) o Ministério da Igualdade como parte do acordo para formar governo, com Irene Montero a ser a principal proponente dessa legislação. O facto de Montero ter abandonado a pasta, sendo substituída pela socialista Ana Redondo, ajudou a sarar as feridas quanto a este tema, mas que agora terão sido reabertas com as alterações saídas do Congresso do PSOE.